quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Resto Permanece Humano

No Livro XI das Metamorfoses de Ovídio, o autor latino canta o mito de Midas e a sua posição na querela entre Pã e Apolo. No monte Tmôlos, o deus da montanha sentencia que Apolo era o vencedor desse litígio. Midas, que vagueava pelos bosques, decide intervir e pronuncia-se em favor do deus mais antigo. Ora Apolo, ofendido e encolerizado por essa ofensa, pune Midas, fazendo-lhe crescer umas orelhas de burro. Porém, "o resto permanece humano". É neste aspecto que devemos deter a nossa atenção. Se considerarmos a hegemonia olímpica, então temos de assumir que estamos perante uma afirmação de poder do deus Apolo, à semelhança daquela que ocorreu em Delfos, no entanto, se nos detivermos no valor de Pã, enquanto deus telúrico e primordial, então podemos concluir que acção de Midas foi justificada, pois defendia um paradigma antigo. A questão fundamental é saber se o que domina Midas é a parte animal ou "o resto que permanece humano". A dúvida que impera é saber o que rege o indivíduo. O instinto? As paixões? Ou a razão e a inteligência? Sabemos, aliás com uma enorme frequência, que a parte animal habita em nós e sabemos também que esse impulso radical nos faz agir sem pensar, porém temos a consciência, ou devemos ter, que é o humano que nos dignifica. O dom de criar, de ser, sabendo que se é, promove em nós a dádiva de sentir uma afinidade radical com a sabedoria. É o Amor de Sophia que exige que ultrapassemos as nossas limitações e sonhemos com um horizonte longínquo. O mundo que hoje conhecemos vê aumentada a punição de Apolo. O burro alastra-se no que resta do humano e uma das poucas coisas que nos pode salvar é a leitura, o conhecimento. A leitura de um livro que inspire dá-nos mais humanidade do que uma vida envolta na repetição do quotidiano e na aceitação inconsciente das convenções que nos impõem.

Leia-se é uma sugestão de caminho.


Ovídio

Metamorfoses

Tradução Paulo Farmhouse Alberto

Livros Cotovia

2007
  

1 comentário:

  1. O pensamento deveria ser o primeiro passo, como deve ser a primeira opção, para percebermos quem somos e o que poderemos ser, ou quanto a nossa natureza permitir ser. É uma lógica pela conceptualidade que deveremos ter sobre a nossa própria existência.

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