segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

domingo, 8 de janeiro de 2017

Unidade e Multiplicidade em Heraclito e Nietzsche

Ender, Johann, Das Trevas, a Luz, 1831.
Budapeste: Academia Húngara das Ciências.

   O problema da relação entre a unidade e a multiplicidade é, no questionamento filosófico, primordial e fundamental, uma vez que a sua síntese constitui a génese do cosmos, resume a variedade de coisas existentes num princípio único que as reúne e que lhes confere sentido. Em Heraclito e em Nietzsche, este problema constitui uma gradação que ora é crescente, ora decrescente, ou seja, unidade, dualidade, multiplicidade e o seu movimento inverso. A diversidade das coisas existentes resume-se numa oposição entre dois princípios em conflito, que se sintetizam na expressão última e una da realidade. No entanto, estes três planos não se apresentam sobre uma estrutura hierárquica, eles cruzam-se num único plano que é o real, só o modo como a eles se acede é que diverge. Para a multiplicidade e para dualidade, o acesso dá-se pelos sentidos, pela experiência, enquanto a apreensão da unidade pressupõe um esforço intuitivo, daí que Heraclito diga: "Ouvindo, não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que todas as coisas são uma" (DK 22 B 50). Desta forma, o sentido que ele expressa ultrapassa-o, vai para além do particular. O Logos que deve ser ouvido é a expressão última do cosmos, que diz que todas as coisas são uma e que indica a existência de uma unidade subjacente à multiplicidade das coisas. Ora, a partir deste fragmento, conclui-se que, no plano do real, a unidade e a multiplicidade coexistem devido à natureza do Logos, enquanto princípio unificador.

   É o Logos que permite que se compreenda a relação entre unidade, dualidade e multiplicidade. Heraclito indica essa compreensão quando diz "Daí que seja necessário seguir o comum; mas, apesar, do Logos ser comum, a maioria dos homens vive como se tivesse uma sabedoria particular" (DK 22 B 2). O Logos é comum, ele confere unidade, pois, embora a maioria não o consiga apreender, ele está presente em todas as coisas. Charles Kahn interpreta este fragmento da seguinte forma: "Em suma, o logos é 'comum' por que ele é (ou expressa) a estrutura que caracteriza todas as coisas, é portanto do domínio público e, por princípio, está disponível a todos os homens" (Kahn: 101). Ou, como diz Bruno Snell, "Uma segunda qualidade do logos em Heraclito é que ele é um koinón, algo de «comum», isto é, penetra tudo, de modo que tudo participa dele. Este espírito está em todas as coisas" (Snell: 43).

   Em Heraclito, a unidade é expressa também pelo facto dos contrários serem duas expressões de uma mesma coisa, sendo, no entanto, próprio da sua natureza manterem-se em oposição e luta constante. Este aspecto leva Heraclito a dizer que "O deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome, muda, tal como o fogo, quando é  misturado com incenso e designado conforme o seu aroma" (DK 22 B 67), bem como "Pólemos é o pai de todas as coisas e de todas elas é soberano, a uns apresenta-os como deuses, a outros como homens, a uns fá-los escravos, a outros homens livres" (DK 22 B 53). O primeiro fragmento mostra a relação entre unidade e dualidade. O deus é um conjunto de contrários, unidos em si mesmo, ou seja, dia e noite expressam as duas possibilidades de um dia, inverno e verão as duas faces do ano, a guerra e a paz as duas formas de estar da humanidade, a saciedade e a fome os dois estados do apetite. Em suma, é um único aspecto que exprime os contrários, respectivamente o dia, o ano, a humanidade e o apetite, e o deus é todos eles. A outra parte do fragmento introduz a alternância dos contrários e o devir, uma vez que compara o deus ao fogo, que, quando misturado com incenso, muda de nome conforme a fragrância do incenso. O segundo fragmento afirma o carácter universal de Pólemos, dizendo que este é o pai e soberano de todas as coisas, ou seja, a guerra, a discórdia, é a matriz da realidade. A guerra é também uma forma de alternância que apresenta uns como deuses, outros como homens, uns faz escravos, outros homens livres.

   O Efésio afirma que "É necessário saber que a guerra (Pólemos) é comum, e a justiça (Dikê) é discórdia (Éris), e que tudo acontece segundo a discórdia e a necessidade" (DK 22 B 80). Este fragmento pode ser dividido em três partes: na primeira, concluímos que a guerra é comum, está presente em todas as coisas, tal como o Logos; na segunda, que a justiça é discórdia, ou seja, ela surge a partir de um jogo de forças, de uma luta entre aspectos consonantes e dissonantes; e, na terceira, que tudo acontece segundo discórdia e necessidade, isto é, tudo resulta de um conflito entre elementos opostos e é a força da Necessidade que, como soberana, semelhante ao Logos, sobre esses elementos opera e governa. Werner Jaeger complementa esta ideia ao dizer que "Em Heraclito essa luta torna-se pura e simplesmente o 'pai de todas as coisas'. A dike só aparece na luta. (…) Aparecem em toda a natureza a abundância e a penúria, causas da guerra. Toda a natureza está repleta de violentos contrastes: o dia e a noite, o verão e o inverno, a guerra e a paz, a vida e a morte sucedem-se em eterna mudança. Todas as oposições da vida cósmica se transformam continuamente umas nas outras e reciprocamente se apagam os prejuízos que causam, para prosseguir com a imagem do processo jurídico. Todo o processo do mundo é uma troca (amoibê). A morte de uma vida é sempre a vida de outra. É eterno o caminho, ascendente e descendente" (Jaeger: 227). Esta é quiçá uma proposta de interpretação para o enigmático fragmento: "Imortais mortais, mortais imortais, que vivem a morte deles e morrem a sua vida" (DK 22 B 62). Nesta explicação de Jaeger, podemos encontrar dois aspectos complementares: por um lado, o valor atribuído a uma Justiça natural, que regula a acção dos opostos e a sua eterna luta, mas que só existe devido a existência deste conflito; e, por outro, a ideia que "Todo o processo do mundo é uma troca", troca esta que expressa a alternância dos contrários, a vitória de um é derrota do outro, todavia a vitória é efémera e quem estava hoje a perder amanhã será o vencedor.

   Nietzsche segue o caminho iniciado por Heraclito quando  diz que "Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põe termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna"(Nietzsche 5: 42). Logo, mais uma vez, toda a mudança tem a sua génese nessa alternância dos opostos e cuja dinâmica  primordial é expressa por uma luta constante.

   A procura de sentido na  relação entre unidade e dualidade é contnuada por Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, os dois elementos, apolíneo e dionisíaco, opostos entre em si, constituem uma forma única de arte, a tragédia ática, isto é, de dois aspectos contraditórios surge uma estrutura única, um modelo plural, mas uno. Apolo e Diónysos tornam-se, não só nos dois elementos fundamentais da tragédia, como também nos dois princípios interpretativos da realidade. Ao primeiro corresponde o sonho, ao segundo o êxtase, um fala por imagens, o outro por altas intuições. Apolo representa a aparência, sendo também o criador da fantasia (Burkert: 285-294), segundo Dante uma "alta fantasia"(Paraíso, XXXIII, 142). A fantasia representa o carácter radical da poesia, da grande poesia. A afinidade entre Apolo e as Musas exemplifica esse ethos radical da fantasia e da poesia enquanto expressão da vida. Por outro lado, ao deus de Delfos, pertence também o principium individuationis, princípio este que possibilita toda a particularização e nascimento da individualidade. Já Diónysos representa o que está por detrás da aparência, ele promove o êxtase, a embriaguez, o entusiasmo de viver (Burkert: 318-328 e Rohde: 303-327). Ao deus que faz as Ménades dançar, pertence a superação do indivíduo, daí que Nietzsche diga que "Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre um ser humano e outro, também a natureza alienada, hostil ou subjugada volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser humano"(Nietzsche 1: 27-28). Face a esta expressão de êxtase, "Agora, no Evangelho da harmonia dos mundos, cada um sente-se não apenas unido, reconciliado, fundido com o seu próximo, mas como um ser único, como se o véu de Maya estivesse rasgado e já só esvoaçasse em farrapos perante o misterioso Uno primordial" (Nietzsche 1: 28).

   Gianni Vattimo interpreta este aspecto da seguinte maneira: "Esta relação entre apolíneo e dionisíaco é acima de tudo uma relação de forças no interior de cada homem, que no início da obra Nietzsche compara com os estados de sonho(o apolíneo) e da embriaguez (o dionisíaco); e que funciona no desenvolvimento da civilização como a dualidade dos sexos na conservação da espécie. Toda a cultura humana é fruto do jogo dialéctico destas duas pulsões (Triebe)"(Vattimo: 18). Neste aspecto, bem como em outros, o pensamento de Nietzsche revela uma grande simpatia pela filosofia de Heraclito, pois também entre estes elementos nietzschianos existe um luta, um Pólemos que, à semelhança dos opostos do Efésio, é também origem e fonte da civilização, da cultura, e, em especial, da arte. É através deste conflito que se atinge o fundo primordial das coisas, que se esconde por detrás do véu da aparência. Esse elemento oculto é como o Logos que, embora seja visível, não é visto por todos. A unidade esconde-se por detrás da multiplicidade, daí que Heraclito diga: "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10). O apolíneo e o dionisíaco escondem o "misterioso Uno primordial". Um revela-o por sugestão e o outro, através do êxtase, por comunicação directa e intuitiva. Heraclito refere esse poder de sugestão de Apolo quando diz que "O Senhor, cujo o oráculo está em Delfos, não revela, nem oculta, mas sugere" (DK 22 B 93). Este é um deus que fala por sinais, por imagens.

   No prólogo à Gaia Ciência, Nietzsche dedica a Heraclito um conjunto de versos, que intitula de Heraclitismo: "Toda a felicidade da terra/ Está na luta, amigos!/ Sim, para nos tornarmos amigos/ É necessário o fumo da poeira!/ Os amigos só são unos em três casos:/ Serem irmãos diante da miséria,/ Serem iguais diante do inimigo,/ Serem livres… diante da morte!" (Nietzsche 2: 25). A luta é, nestes versos,  o valor por excelência, pois é mediante a sua acção que se garante a felicidade terrena e a amizade, todavia, essa unidade que é a guerra está também presente na miséria, na união face ao inimigo e na morte. Apesar desta concórdia entre a filosofia de Heraclito e de Nietzsche, Gilles Deleuze salienta a inovação nietzschiana: "O múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir, do Ser. Mas o Ser e o Uno fazem melhor do que perder o seu sentido; tomam um novo sentido. Porque, agora, o Uno diz-se do múltiplo enquanto múltiplo (pedaços ou fragmentos); o Ser diz-se do devir enquanto devir. Tal é a inversão nietzschiana, ou a terceira figura da transmutação. Já não se opõe o devir ao Ser, o múltiplo ao Uno(…). Pelo contrário, afirma-se a necessidade do acaso. Dioniso é jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um objecto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso; desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o lançamento dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno. Retornar é precisamente o ser do devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso"(Deleuze: 30). Porém, Heraclito não deixa de estar presente, uma vez que é essa ideia de jogo que é indicada no fragmento: "A vida é uma criança a brincar, movendo as peças do jogo: nele a criança é soberana" (DK 22 B 52). Por outro lado, esta ideia de união do uno do múltiplo, de um expressar o outro, de um ser a expressão fragmentada do outro é indicada pelo filósofo grego quando este afirma que "As coisas unidas são o todo e o não-todo, o convergente e o divergente, o consonante e o dissonante; da totalidade a unidade e da unidade a totalidade" (DK 22 B 10).

   Deleuze introduz também a "terceira figura" do jogo: o eterno retorno. Sobre esta ideia, Nietzsche, no Ecce Homo, diz o seguinte: "A doutrina do «eterno retorno», ou seja, de um ciclo repetido, incondicionado e eterno, esta doutrina de Zaratustra poderia talvez já ter sido ensinada por Heraclito. Pelo menos a Stoa, que herdou de Heraclito quase todas as suas ideias, apresenta sinais dela" (Nietzsche 3: 102). Nietzsche admite a hipótese de esta ideia já ter sido afirmada por Heraclito. João Vila-Chã salienta um outro aspecto importante acerca do «eterno retorno», quando diz que "Podemos dizer, finalmente, ser o eterno retorno para Nietzsche uma realidade eminentemente selectiva, e isso numa dupla dimensão. Em primeiro lugar, porque constitui lei constitutiva da autonomia da vontade que se quer ver livre da moral: tudo aquilo que se quer deve ser querido de maneira a que com esse mesmo querer se queira também o seu eterno retorno. Por outro lado, a ideia de eterno retorno significa aqui também ser selectivo, já que, na realidade, apenas retorna aquilo que pode ser afirmado, ou que, por outras palavras, pode ser causa de alegria no ser. Tudo o que é negativo, tudo quanto deve ser negado, é simplesmente expulso pelo movimento do eterno retorno" (Vila-Chã: 23-24). O Eterno Retorno apresenta-se como uma filosofia da vontade e uma afirmação da vida. No Crepúsculo dos Ídolos, continua essa ideia ao afirmar: "O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade - eis o que eu chamo dionisíaco, eis o que adivinhei como a ponte para psicologia do poeta trágico"(Nietzsche 4: 119). A filosofia de Nietzsche é ela mesma um jogo de forças e de oposições, Pólemos é o pai, é a génese do seu pensamento, a semente que, com uma falsa harmonia de opostos, ilude e esconde. Heraclito é, no seu aspecto mais antigo, o pai espiritual de Nietzsche, tal como Schopenhauer é o seu pai moderno.

   Em suma, tanto em Nietzsche como em Heraclito, a unidade e a multiplicidade não estão separadas hierarquicamente, elas fundem-se no mesmo plano. A unidade expressa-se na oposição, na guerra dos contrários, tal como a multiplicidade esconde a unidade. O valor do pensamento destes dois filósofos reside numa explícita afirmação da vida e na recusa de uma metafísica inimiga da vida e das suas pulsões inaugurais.



Bibliografia:

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Dante - Dante, Divina Comédia, 5ª Edição. Tradução Vasco Graça Moura. Venda Nova, Bertrand Editora, 2000.

Deleuze - Deleuze, Gilles, Nietzsche e a Filosofia, 2ª Edição. Tradução António M. Magalhães. Lisboa: Rés Editora, 2001.

Kahn - Kahn, Charles H., The Art and Thought of Heraclitus - An Edition of the Fragments with Translation and Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.

Heraclito - Heraclito, Fragmentos. Tradução do Autor e Numeração Diehls.

Jaeger - Jaeger, Werner, Paideia - A Formação do Homem Grego, 3ª Edição. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995(1986).

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Nietzsche 5 - Nietzsche, A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873). Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa: Edições 70, s/d.

Rohde - Rohde, Erwin, Psique - El Culto de las Almas y la Creencia en la Imortalidad entre los Griegos, 2 Volumes, Tradução Salvador Fernández Ramírez. Barcelona: Las Ediciones Liberales Editorial Labor, 1973.

Snell - Snell, Bruno, A Descoberta do Espírito. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

Vattimo - Vattimo, Gianni, Introdução a Nietzsche. Tradução António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1990

Vila-Chã - Vila-Chã, João J., "Friedrich Nietzsche (1844-1900): Considerando Alguns Efeitos" in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo LVII, Fascículo 1, 2001, pp.3-28.