quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O Daímon de uma Palavra (Poesia)

Rubens, Peter Paul, The Fall of Icarus, 1636.
Bruxelas: Musées Royaux des Beaux-Arts.

O Daímon de uma Palavra


Como podes não ser
Esse ser de passagem
Que sozinho persegue
A sagacidade do bem
E sozinho tenta e recua
Na condescendência
Do mal imenso


18 de Agosto de 2018
RMdF

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos (Um Pequeno Conto)

Raffaello, Sanzio, The Voyage of Galatea, 1511.
Roma: Villa Farnesina.
https://www.wga.hu/


O Velho que Não Escutava o Riso dos Golfinhos



(Um Pequeno Conto)



Um velho quase cego, sentado em frente ao mundo, tentava resgatar o sonho da memória. Simplício não procurava rememorar uma outra vida. Queria sim recuperar o riso perdido. Queria deslumbrar-se com aquela inocência singular, com aquele doce despertar. Queria fitar e esconder para si a paleta da realidade, as matizes que se estendiam sem esforço sobre o seu olhar, mas a doença que a fere a vida deixou-lhe apenas vultos e sombras, formas ocultas e memórias disformes. Simplício perdera o horizonte.

Naquele dia, depois de tentar tornar nítido o fumo espesso, Simplício percebeu, sem necessidade de recorrer aos sentidos, que existia, mesmo diante de si, uma novidade, uma expressão inaugural que colhia o bater de asas de um anjo. Um demiurgo estava de passagem. Porém, o som da origem foi suspenso por um acorde demoníaco. Na harmonia delicada das asas ondulantes, existia agora uma dissonante tensão, um melodioso conflito que surgia porque algo estava para nascer. Simplício que perdera a cor acreditava que nada podia nascer, que não existia nada para criar. Era tudo sombra. Contudo, o homem caíra no seu próprio erro. O nevoeiro era mera ilusão.

A nuvem tornava-se mar e os vultos ganhavam a forma de ondas. O velho pensou que o Sol brincava com ele, que a sua luz gerava uma desejada fantasia. Foi então que a maré lhe ofertou o perfume da maresia. O aroma tornava-se memória e Simplício regressava a si. O tempo já não se alongava em fio de tecedeira, era um aro num jogo de criança. Tudo regressava à origem. Simplício voltava à casa que nunca conhecera. Aquele areal, aquele mar, aquele vento eram o lugar da memória, pois o que permanece é o que se lembra e o que se imagina. O homem estava sentado, com as mãos apoiadas na bengala, ceifando aqueles raios de luz e, sem que desse conta, uma forma furtou-lhe a imagem. Diante de si, contornado pelo Sol, um menino quebrara-lhe a memória, o sonho e a ilusão.

- Saí da frente, fedelho! Não vês que me tiras o Sol.
- Como lhe posso tirar o Sol se o Sol é todos?
- Criatura insolente! Já não há educação. Os pais não educam as crianças. No meu tempo, levava uma galheta que ficava logo em sentido.
- Desculpe, não o queria ofender, só lhe tentei dizer que não lhe posso tirar o que não é seu, mas não se zangue que eu desvio-me. O senhor estava a ver o quê?
- Nada que te diga respeito.
- É que o senhor olhava em frente quando estão todos a olhar para a sua esquerda. Toda a gente quer ver os golfinhos.
- Miúdo, tu não vês que eu sou cego.
- Não tem de ver, basta ouvir o riso dos golfinhos.
- Eu não oiço nada.
- Esteja atento. Parecem gargalhadas.
- Não oiço nada. Ora esta, não é que o raio do miúdo não me deixa em paz. Vai para ao pé dos teus pais. O teu lugar não é aqui.
- Eu gosto deste lugar. É tão bom ouvir o riso dos golfinhos. Eles falam a rir.

Simplício estava incomodado com a presença da criança. O velho sabia que só via sombras, mas sempre ouvira bem. Diziam-lhe até que tinha ouvidos de tísico. Como podia não ouvir o riso golfinhos? A questão inquietava o homem.

- Ó miúdo, diz-me para onde me devo virar. Onde estão os tais golfinhos?
- Para este lado, eu ajudo-o – menino, levando o velho pela mão, sentou-o em frente aos golfinhos.
- Aqui estou bem?
- Sim, está. Oiça agora. Os golfinhos estão a gargalhar. Riem como se ouvissem uma piada. Sabe como aquelas que nos fazem chorar de tanto rir.
- Não oiço nada. Estás a enganar-me. Estás a gozar comigo. Sai, sai já daqui ou dou-te umas bengaladas!

A criança desapareceu, deixando o velho na sua própria angústia. Simplício não conseguia escutar o riso dos golfinhos. A ausência condenara-lhe a possibilidade. A audição sempre lhe compensara o limiar da cegueira, todavia a dúvida cercara-lhe a certeza. Se não podia confiar no que ouvia, tinha de se firmar nos vultos e deixar-se assombrar pela confusão das coisas. No entanto, não se dera por derrotado. Simplício, já que não conseguia ouvir o riso dos golfinhos, queria afastar a poeira do olhar e deter-se nas suas próprias sombras. Focava-se no horizonte perdido e procurava aqueles seres de passagem, todavia, nenhuma forma esfumada cavalgava as ondas da sua imaginação. O seu mar era apenas o tempo que avança e recua, o perfume de sal espesso que lhe tocava o sopro e o desalento. Nada existia naquele oceano revolto. O Sol sulcava-lhe as rugas e a penumbra de luz ferida vertia-se numa única lágrima. Nos vultos serpentinos, os golfinhos permaneciam indeterminados. Simplício desistiu. Deixou que o rosto cobrisse a escuridão. Colocou as mãos na bengala e baixou a cabeça.

Passados alguns minutos, que se assemelhavam a horas de mergulho profundo, o homem ergueu a face tombada. Não havia nem mar, nem ondas. Simplício estava num banco de jardim, observando as sombras de passagem, gente que corria, gente que, sem mar, se afogava. Aquele era o seu lugar. Numa quietude sem espanto, o velho observava a vida dos outros. Porém, aquela outra viagem esvaziara-lhe o interesse. Simplício levantou-se e, apoiado na sua bengala, caminhou até casa. Subiu as escadas estreitas, baixou a cabeça para entrar e suspirou. Sem qualquer alento, deu desprezo ao Sol do crepúsculo e correu as cortinas. Puxou as orelhas da cama, para lá do seu próprio rosto, e dormiu. Nessa noite, Simplício sonhou com golfinhos.         

RMdF

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O Sentido do Céu (Poesia)

Gogh, Vincent van, Starry Night, June 1889.
Nova Iorque: Museum of Modern Art.


O Sentido do Céu


Astro mudo
Ideia falante
É profunda
A divindade
Das estrelas


1 de Fevereiro de 2019
RMdF

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Sugestão de Leitura: Pierre Hadot - Não te Esqueças de Viver


Hadot, Pierre, Não te Esqueças de Viver - Goethe e a Tradição dos Exercícios Espirituais.

Tradução: Maria Etelvina Santos.

Lisboa: Relógio D'Água, 2019.

ISBN: 9789896419622

Páginas: 192

Preço: 17€

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Revoltada a Rosa (Poesia)

Botticelli, Sandro, Retrato de Dante, c.1495.
Colecção Privada.
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Revoltada a Rosa


E não o albo dissidente
Da áurea cidade exilado
O nobre poeta universal
Não cai como corpo morto cai
Cai vivo inteiro na morte sua
Praguejando e pelejando
Revoltado voraz e triste
Consciente do que se perdera
Cai vivo inteiro na morte sua
Para uma cidade em queda
E uma divina amada já caída


8 de Outubro de 2019
RMdF

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Sugestão de Leitura: Alberto Manguel - Monstros Fabulosos


Manguel, Alberto, Monstros Fabulosos: Drácula, Alice, Super-Homem e Outros Amigos Literários.

Lisboa: Tinta da China, 2019.

ISBN: 9789896715038

Páginas: 232

Preço: 17,90€

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Acreditar (Poesia)

Friedrich, Caspar David, Woman before the Rising Sun (Woman before the Setting Sun), 1818-20.
 Essen: Museum Folkwang.
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Acreditar 


Crepitava na alma a incandescência de cada oração 
E abandonada às preces do amanhã fúlgida esperava


11 de Agosto de 2019
RMdF

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Voar (Poesia)

Troy, Jean-François de, An Allegory of Time Unveiling Truth, 1733.
Londres: National Gallery.
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Voar

Se rasante
Voas
Sobre as coisas
Pairando
Vendo
Desconhecendo
Em nada encontrarás
A profundidade
Íntima
E electiva
Voa antes a pique
Falcão peregrino
Rasgando
Conhecendo
O abismo
Da realidade

27 de Setembro de 2019
RMdF

terça-feira, 8 de outubro de 2019

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A Sombra da Vida (Poesia)

Caravaggio, Narciso, 1598-99.
Roma: Galleria Nazionale d'Arte Antica.

A Sombra da Vida


Como setas e dardos
                                   O vento nas folhas

Como espada e gume
                                     A onda no areal

Como sangue e ferida
                                     O fogo no madeiro

Como guerra e morte
                                    A ignorância no humano


Essa é a sombra da vida
                                        A sabedoria ausente


3 de Setembro de 2019
RMdF

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A Serpente da Sabedoria (Poesia)

Bourdon, Sébastien, Moses and the Brazen Serpent, 1653-4. 
Madrid: Museu do Prado.
https://www.wga.hu/

A Serpente da Sabedoria


Na sua serpente avançarás
Girando sozinho em círculo
Ou serpenteando o caminho
Pisarás a via da providência
Sulcando as ruas do destino
E as alamedas da liberdade
E no fim concluindo a senda
Filho de Sophia serás quem és


6 de Agosto de 2019
RMdF

terça-feira, 30 de julho de 2019

Sugestão de Leitura: Carl Gustav Jung - Memórias, Sonhos, Reflexões


Jung, Carl Gustav, Memórias, Sonhos, Reflexões.

Tradução: António Sousa Ribeiro.

Lisboa: Relógio D'Água, 2019.

ISBN: 9789896419509

Páginas: 424

Preço: 20€

quinta-feira, 11 de julho de 2019

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Uma Ferida no Ar (Poesia)

Gérard, François, Cupido e Psyche, 1798.
Paris:Museu do Louvre.
Uma Ferida no Ar


Não Não ______________
Nem o mar é rude e crespo
Nem as ondas ferem o ar
Violentos são os rochedos
Os cumes em alta escarpa
E os promontórios afiados

Não Não ______________
Nem a terra é mansa e triste
Nem as árvores ferem o ar
Belicosas são as montanhas
E ainda as pedras do ocaso
Do destino firmes contendas

Não Não ______________
Nem o vento é revoltado e só
Nem as aves do céu ferem o ar
Cortante é o grito de uma brisa
A ira dançarina de um tornado
E o vendaval numa madrugada

Não Não ______________
Nem o Sol é solitário e ardente
Nem os seus lumes ferem o ar
Cruel é o céu sem luz ou estrela
O astro errante do olhar ocultado
É a vida que sobrevivente recua

_____________ perdida a alma
Da sabedoria é uma ferida no ar


6 de Julho de 2019
RMdF


Fonte da Imagem: https://www.wga.hu/framex-e.html?file=html/h/holbein/hans_y/2drawing/1530/07studie.html&find=writing

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Missão (Poesia)

Coli, Giovanni, The Triumph of Wisdom, 1671.
Veneza: Convento de San Giorgio Maggiore.


Missão


Se para a tua vida
queres uma missão
Outra não terás tu
Que tudo aprender
E no fim nada saber
Não te prendas pois
Em doces ilusões
De vã grandeza
Pois no mundo
És somente
Uma partícula
De estelar
Poeira


4 de Fevereiro de 2019
RMdF




Fonte da Imagem: https://www.wga.hu/framex-e.html?file=html/h/holbein/hans_y/2drawing/1530/07studie.html&find=writing

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Orar ao Inevitável (Poesia)

Mantegna, Andrea, Introdução do Culto de Cibele em Roma, 1505-06.
Londres: National Gallery.


Orar ao Inevitável


Ó Adrasteia ninfa
Arcaica deusa
Do Inevitável fado
Para Reia, Cibele 
Ou a Necessidade
Do númen o nome
De epíteto sagrado
Segue ó deusa antiga
O moderno humano
Concede à memória
Da vida e da morte
A feliz fortuna e a sorte
De um bom demiurgo


28 de Outubro de 2018
RMdF

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Sugestão de Leitura: Platão - Leis, 3 Volumes


Platão, Leis, 3 Volumes.

Tradução: Carlos Humberto Gomes.

Lisboa: Edições 70, 2017-2019 (1º Vol., 1ª Edição, 2004).

ISBN: 1º Vol. 9789724420677; 2º Vol. 9789724411958; 3º Vol. 9789724414843.

Páginas: 1º Vol. 272; 2º Vol. 317; 3º Vol. 266.

Preço: 1º Vol. 17,90€; 2º Vol. 17,90€; 3º Vol. 17,90€.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Obra ao Negro (Poesia)

Holbein, Hans o Jovem, Estudo das Mãos de
Erasmo de Roterdão
, c.1523.
Paris: Museu do Louvre.


Obra ao Negro


De cinzel
A tinta
Núbia
A marca
Que fere
O papel
Texto
Escrito
Lavrado
No alvor
Solitário
Traçado


26 de Maio de 2019
RMdF





segunda-feira, 13 de maio de 2019

Entre a Vida e a Morte (Poesia)

Baldung Grien, Hans, Death and the Maiden, 1518-20.
Basel: Öffentliche Kunstsammlung.


Entre a Vida e a Morte


Se viúva a vida chora
Só à morte dizeis vós
Esta não é a tua hora
Recua já ó cruel algoz


Se leda se nega a vida
Sombria a morte vem
E dizeis A toda a brida
Dai o corcel a alguém


Se em fio vai a gadanha
Escapar é célere gesto
Dizeis vós Se ela ganha
Nada vale o passo lesto


6 de Maio de 2019
RMdF










terça-feira, 7 de maio de 2019

O Crepúsculo do Feminino (Poesia)

Botticelli, Sandro, Pallas, c.1490.
Florença: Galleria degli Uffizi.

Crepúsculo do Feminino


De sangue e leite Reia cretense
Ou do eterno fluxo Magna Mãe
A placenta de um deus menino
Na Figália corrente rio se torna
Onde na rude e silvestre Arcádia
Outra divina destronada deusa
Num templo perdido permanece
Dando apenas o dia ao ano todo
Eclipsada está a antiga deidade
Esquecida está a materna rainha
Da terra e do ar da água e do fogo
Perdemos pois o divino feminino
E do novo homem tudo se tornou
Sombra e imagem representação


29 de Janeiro de 2019
RMdF

segunda-feira, 6 de maio de 2019

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Abril (Poesia)


Abril

Renovado ou perdido
O nosso Abril distante
Segues sem passado
Mas sulcado entre nós
Essa sombria herança
Do homem providencial
Ignoras o gesto delicado
Da nossa gentil senhora
Que sempre só e negada
Designa-se Democracia
Liberdade e igualdade
Renovado ou perdido
O nosso Abril distante
Só é teu se for revolução

25 de Abril de 2019
RMdF

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Morrente o Tempo (Poesia)

Vouet, Simon, Saturn, Conquered by Amor, 
Venus and Hope, 1645-46. Burges: Musée du Berry.

Morrente o Tempo


Moribundo clama o tempo
Esse agora sempre perdido
O oportuno momento seu
Que não é nem o passado
Funesto saudoso e iludido
Nem do futuro a sombra
Estendida fiel e prometida
Severa saturnina é a lição
Do tempo fiado ora tecido
Ora cortado das sapientes
Rubras deusas de outrora
Moribundo clama o Tempo
Divino eterno mas morrente


21 de Março de 2019
RMdF

terça-feira, 9 de abril de 2019

Esse elástico em pés de menina (Poesia)

Gauguin, Paul, Breton Girls Dancing, 1888, Washington: National Gallery of Art.


Esse elástico em pés de menina

Se escapares da rotina
Da autocarro atrasado
Do dinheiro que não estica
Das pessoas malignas
Que sem autorização 
Te invadem a vida
E pensares em Deus e no Tempo
Não com o cálculo do físico
Nem com a razão do filósofo 
Mas com o espírito livre de um poeta
Compreenderás não como metáfora
Mas como realidade vibrante
Visão primordial da totalidade 
Que Deus e o Tempo
São três meninas a jogar ao elástico
Qual feminina trindade
Deusa tríplice e fiandeira
Nesse jogo de criança
Ouvirás as meninas a cantar
Batendo as palmas
Dando som ao universo
E as três trauteando dirão
Salta pisa e cruza
Pisa cruza e salta
E a gravidade o espaço e o tempo
Comprimindo-se e estendendo-se
Tornar-se-ão a unidade
De uma relativa verdade
E tu do quotidiano liberto humano
Observarás o elástico sob os pés da menina
Aquela que dança entre as irmãs
E então o tempo 
Esse elástico em pés de criança
Saltado será a oportunidade 
Pisado o momento 
E cruzado e estendido 
Toda uma vida
Agora longe da rotina 
Da autocarro atrasado
Do dinheiro que não estica
Das pessoas malignas
Que sem autorização 
Te invadem a vida
Quando procurares 
A divina imagem
Não vejas pois o velho barbudo 
Vê antes três meninas a brincar
Três mulheres que voltam a jogar


25 de Março de 2019
RMdF

segunda-feira, 8 de abril de 2019

quarta-feira, 3 de abril de 2019

segunda-feira, 25 de março de 2019

Do Eu ao Todo (Poesia)

Curradi, Francesco, Narcissus, s/d. 
Florença: Galleria Palatina (Palazzo Pitti).
Do Eu ao Todo

Se na vida
Algo queres ser
Perde o eu
A que tanto te agarras
Para abraçares o todo
Que tudo te dá

Não sejas pois a repetição
Desse eu que tudo detém
Sem nada conseguir ser
Sê antes a profundidade
De um poço vazio
Que paciente espera
A água as chuvas
Encher-se
Tornar-se outro
Cheio renovar-se

Perde pois esse eu
Que em tudo se inclui
Como Narciso
Dizendo
Fiz sou apareci
Dilui-te na obra do agora
Na sabedoria que é semente
E sê antes a árvore
Que vê e ouve
O rio que corre
Sem ter de ser

Se na vida
Ou além da morte
Algo queres ser
Perde esse eu
Que só a ilusão te dá
Para vivo puderes ser
Não uma parte no todo
Mas o todo por toda a parte

24 de Março de 2019

RMdF

quarta-feira, 20 de março de 2019

sexta-feira, 15 de março de 2019

Humana Possibilidade (Poesia)

Allori, Alessandro, Allegory of Human Life, 1570-90. 
Florença: Galleria degli Uffizi.

Humana Possibilidade


Se a humanidade pudesse ser _____________
O canto dos rouxinóis rasgando a madrugada
Ou a douta maré que solitária avança e recua
Deixando ao despido areal aquilo que fora seu

Se a humanidade pudesse ser _____________
O majestoso veado-rei senhor do árboreo reino
Que sabe que liderar é ainda estar e não ser visto
Ou aquela simples flor que reúne em si o universo

Ai se a humanidade pudesse ser ___________
A singularidade magnânima de uma nova estrela
Ou a constância luminar que o Sol e a Lua nos dá
Surgindo e escondendo-se dando de si ao outro

Se a humanidade pudesse ser _____________
Aquele riso frisado ao vento das nossas crianças
Cantando sobre os sulcos dos seus antepassados
Ou gravando a marca solitária do incerto amanhã

Se a humanidade pudesse ser _____________
A doce memória da palavra o mestre revisitante
Da lição que a história nos dá transformando
O agora sempre perdido nas páginas do futuro

Ai se a humanidade pudesse ser ___________
Tudo aquilo que não é mas que por sua dádiva
Tende a ser ou a excelência que por raridade
Ou excepção exalta o melhor do ser humano

_______________ Sim se a nossa humanidade
Pudesse ser a lei da sabedoria verdade e vida
Tornar-se-ia o que teima em não ser uma ideia
O sonho e o ideal o nascer de um novo humano


29 de Janeiro de 2019
RMdF

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Unidade Dispersa (Poesia)

Juanes, Juan, Última Ceia, 1475-1545.
Valência: Igreja de São Nicolau de Bari e São Pedro Mártir.

Unidade Dispersa


Como podes ser uno
Se líquido te vertes
Em todas as coisas 

Como podes ser uno
Se longe procuras
O que habita em ti

Como podes ser uno
Se ávido te espalhas 
Na teia da vaidade

Como podes ser uno
Se preferes a poeira
Dos dias à eternidade

Como podes ser uno
Se múltiplo te repartes
E sozinho permaneces

Porque por seres uno
És também a dispersa
Unidade das coisas



20/01/2019

RMdF

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Os Doze Signos do Zodíaco (Poesia)

Miniaturista Francês in Livre des Proprietes des Choses
 de Barthelemy l'Anglais (MS Fr. 9140), c. 1480.
Paris: Bibliothèque Nationale.

Os Doze Signos do Zodíaco



De guirlanda a orbe de estrelas
A regra constante de eclípticas
Constelações e em dúzia certa
As fixámos desenhadas no alto
Céu as linhas que uma luz une
Concedendo a palavra e o mito
À longínqua matéria, à visível
Órbita E assim num só círculo
Se tornam a conhecida ordem
Não de ciência mas de sentido


11/01/2019
RMdF


segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Iniciação (Poesia)

Aachen, Hans von, Alegoria, 1598. Munique: Alte Pinakothek.
 Iniciação

Sê a escada esfumada
Perdida entre as estrelas
A via oculta do peregrino

Sê o raio trovante da fé
Que do crente é símbolo
Concordante via ou sinal

Sê a douta anciã serpente
Da sabedoria viril amante
E do tempo eterno círculo

Vivei pois como agrilhoado
Manso servil espectador

Ou tornai-vos a iniciação
A escada o raio a serpente

02/01/2019
RMdF