terça-feira, 30 de agosto de 2016

Benjamin e o Anjo da História

Paul Klee, Angelus Novus, 1920. Jerusalém: Museu de Israel.

Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.

Benjamin, Walter, "Sobre o Conceito de História", O Anjo da História, Edição e Tradução de João Barrento, pp. 13-4. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.


Es gibt ein Bild von Klee, das Angelus Novus heißt. Ein Engel ist darauf dargestellt, der aussieht, als wäre er im Begriff, sich von etwas zu entfernen, worauf er starrt. Seine Augen sind aufgerissen, sein Mund steht offen und seine Flügel sind ausgespannt. Der Engel der Geschichte muß so aussehen. Er hat das Antlitz der Vergangenheit zugewendet. Wo eine Kette von Begebenheiten vor uns erscheint, da sieht er eine einzige Katastrophe, die unablässig Trümmer auf Trümmer häuft und sie ihm vor die Füße schleudert. Er möchte wohl verweilen, die Toten wecken und das Zerschlagene zusammenfügen. Aber ein Sturm weht vom Paradiese her, der sich in seinen Flügeln verfangen hat und so stark ist, daß der Engel sie nicht mehr schließen kann. Dieser Sturm treibt ihn unaufhaltsam in die Zukunft, der er den Rücken kehrt, während der Trümmerhaufen vor ihm zum Himmel wächst. Das, was wir den Fortschritt nennen, ist dieser Sturm.

Benjamin, Walter, "Über den Begriff der Geschichte", Gesammelte Schriften, I, 2, pp. 697-8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974 (1991).

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Remissão do Humano

Poussin, Nicolas, Eco e Narcisso, 1628-30. Paris: Museu do Louvre.

Vivemos uma era dominada por um paradoxo radical que indica que quanto maior é o individualismo, mais débil a noção de humano e de humanidade. O eu, a personalidade, engrandece e a consciência de si ou enfraquece ou não chega a ser alcançada. O humano como categoria está em remissão.
 
O individualismo tolhe o humano, porque se impõe no mundo, sem nada dar e sem nada receber. É uma projecção do eu que se julga mais do que verdadeiramente é. Jung diz que "tal como tendemos a assumir que o mundo é como o vemos, nós supomos inocentemente que as pessoas são como as imaginamos. (...) Todos os conteúdo do nosso inconsciente estão constantemente a ser projectados no meio que nos rodeia (...) Cum grano salis, nós vemos sempre os nossos erros inconfessados no nosso oponente" ("General Aspects of Dream Psychology", CW 8, 1972, par. 507). Aquilo que, por demasiadas vezes, tomamos como certo, como facto, como realidade não é mais que uma explosão de subjectividade, ou seja, vertemos aquilo que somos e que, na maior parte das vezes, desconhecemos num determinado objecto, projectamos o nosso eu em algo que passa de ser o que é para ser uma continuidade de nós. A maioria destes fenómeno ocorrem salutarmente e servem de base para o processo gnoseológico e para a criação de estruturas relacionais entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e o mundo. No entanto, o individualismo e o exacerbamento do eu transgridem a natureza relacional e transformam-se numa dinâmica bélica. O eu, sem consciência de si, invade o mundo, subjuga o outro e impõe o seu domínio e, quando o faz, debilita o humano e anula a sua humanidade.

Segundo Freud, o narcisismo, numa abordagem primária, apresenta-se como complemento libidinal do egoísmo face ao instinto de preservação. Ora as estruturas primitivas do eu, em momentos de crise de identidade, tornam-se dominantes, daí que, por instinto territorial, se transforme a auto estima em narcisismo. Frases como não quero saber que os outros não gostem de mim, eu gosto, eu sou assim, quem não gosta, ponha na borda do prato, eu é que seinão quero saber o que pensam revelam traços infantis e narcisistas que, numa idade em que já não fazem sentido, podem originar uma megalomania patológica. Freud, na sua introdução ao narcisismo (Zur Einführung Des Narzissmus, 1914), aponta essa passagem do objecto da libido, em especial a mãe, do Self para a realidade social, ora é nesta projecção que a personalidade considera o mundo o seu domínio, tal como a criança vê a mãe como sendo apenas sua e sente ciúmes, senão mesmo raiva, quando alguém dela se aproxima. O narcisismo primitivo da criança não permite a partilha da progenitora. Porém, a criança cresce e é suposto que o seu desenvolvimento altere este comportamento. Quando um adulto continua a revelar estes comportamentos narcisistas, mesmo que o foco já não seja a mãe, mas sim a sua personalidade, o seu lugar na realidade social, podemos considerar que esse indivíduo sofre de uma perturbação.

O transtorno de personalidade narcisista, inscrito no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM - IV), é marcado por uma componente dramática e emotiva, de carácter extremamente egocêntrico, o que faz com que seja difícil de diagnosticar por parte dos terapeutas. O narcisista não consegue ou tem relutância em admitir que tem um problema. Este transtorno pertence à categoria dos transtornos borderline e antissocial. Numa perspectiva filosófica, o narcisismo é uma negação do humano, pois a consciência da nossa humanidade é alcançada pela compreensão e aceitação dos nossos limites, e o narcisista acredita não ter limites, ou se os tem estão num patamar superior aos dos demais. A sintomatologia do narcisista passa, primeiro, por uma grande necessidade de atenção - olhem todos, vejam o que eu fiz -, conjugada quase sempre por um estado de arrogância, e depois por uma expectativa de reconhecimento, todavia, os atributos de base não correspondem ao que foi executado. É, neste ponto, que o transtorno de personalidade narcisista se pode relacionar com a síndrome de Dunning-Kruger. No artigo "Unskilled  and  Unaware  of  It:  How  Difficulties  in  Recognizing  One's  Own Incompetence  Lead  to  Inflated  Self-Assessments " (Journal of Personality and Social Psychology, 1999, Volume 77, Número 6, pp.1121-1134 ), os psicólogos David Dunning e Justin Kruger estabelecem uma relação entre estupidez ou ignorância e vaidade. A partir do estudo da amostra, foi possível fixar dois princípios fundamentais: primeiro, os indivíduos incompetentes tendem a sobrevalorizar as suas próprias habilidades; e, segundo, os indivíduos incompetentes são incapazes de reconhecer as verdadeiras habilidades dos outros. Estes dois aspectos da síndrome de Dunning-Kruger reforçam a inveja como sintoma primordial do transtorno de personalidade narcisista, pois neste caso a inveja é crónica e basilar, o indivíduo não só nutre uma inveja desproporcional pelos outros, por o que outros são e fazem, como também acredita que é alvo de inveja, de inveja constante e permanente. A obsessão pela genialidade, pela beleza, pela riqueza, pela fama impedem-no de criar empatia, uma vez que a crença na sua superioridade obriga a uma exigência de tratamento preferencial e especial, tornando-o inevitavelmente arrogante.

Erich Fromm diz que "o narcisismo é a essência de todas as patologias psíquicas graves. Para a pessoa envolvida narcisisticamente, existe apenas uma realidade, a sua, determinada pelos seus processos, sentimentos e necessidades. O mundo exterior não é experienciado ou percepcionado objectivamente, isto é, não existe nos seus próprios termos, condições e necessidades. A forma mais extrema de narcisismo pode ser encontrada em todas as formas de insanidade" (The Sane Society, 2ª Edição, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2002, p.34). A sociedade actual criou um conjunto de exigências e de processos de validação social que cultivam o narcisismo. O culto da imagem, a idolatria do corpo, corrompe as estruturas interrelacionais, pois julgamos o outro, atribuímos-lhe um patamar qualitativo, consoante a sua imagem, o seu corpo, em acordo com o paradigma em vigor. O gordo, segundo os narcisistas, tem menos valor social que o magro. A indumentária e os adornos, a tecnologia que se ostenta, as fotografias que se exibem, o emprego que se tem, as férias e as viagens que se fazem, tudo serve para avaliar o outro, porém, existe uma grande dificuldade em compreender o outro pela sua humanidade. A aceitação do outro pelos seus limites implica a aceitação dos nossos próprios limites e isso é um processo difícil de alcançar. A exigência da imagem, do valor que nos é atribuído, não permite fragilidades. Jung diz que "a sombra é um problema moral que desafia a totalidade do ego-personalidade, pois ninguém se torna consciente da sombra sem um esforço moral considerável. Tornar-se consciente disso implica reconhecer os aspectos mais negros da personalidade como presentes e reais" ("The Shadow", CW 9ii, 1979, par. 14). A sombra é parte de nós, da nossa personalidade, a que queremos negar a existência, mas da qual não se pode fugir e cujo confronto é inevitável. Em última análise, a sombra representa um conjunto de expressões do inconsciente que apontam para o medo da morte, da aniquilação e da decadência. Hoje isso está particularmente presente na vontade narcisista de ignorar a morte e o envelhecimento. Criou-se a ilusão que se comermos bem, formos activos e, quando formos velhos, dermos muitos pinotes, evitamos a decadência própria da nossa condição humana. A doença e a morte não são tão criteriosas como julgamos, pois agarram qualquer um e, quase sempre, sem aviso prévio, mas essa é também a beleza de ser humano. A imortalidade dos deuses não permite que se dê valor ao momento e às pequenas coisas.

O ser humano, contrariamente às outras espécies, tem a possibilidade de se expressar através de uma dualidade que tem tanto de belo como de horror.  Os outros animais movem-se por instintos e emoções primárias. Jung apresenta esta dicotomia através dos conceitos de Self e de Sombra. Se a sombra é o nosso lado negro, o Self é o "Deus dentro nós" ("The Mana-Personality", CW 7, 1972, par. 399). O narcisismo faz com que a Sombra negue o Self e ao fazê-lo arrasta a personalidade, o ego, para uma realidade onde o arquétipo numinoso de totalidade está ausente ou, no mínimo, projectado na visão que o narcisista tem de si próprio. O narcisista é o único deus na sala, é o centro, o umbigo da realidade, daí a sua dificuldade em se relacionar com os outros. A remissão do humano ocorre devido a essa mesma impossibilidade. Actualmente, a incapacidade de nos relacionarmos como humanos é particularmente visível quando vemos, sobretudo nas redes sociais e nas conversas informais, uma predisposição para sentir maior empatia por um animal maltratado do que por um outro ser humano, mesmo que seja uma criança, numa situação em que a dignidade lhe foi retirada. Uma vez que não nos conseguimos relacionar salutarmente, projectamos nos animais, sobretudo os domésticos, essa fragilidade. Estamos a humanizar os animais e a desumanizar as pessoas e a causa primeira desse processo é um narcisismo generalizado. O cão ou gato não nos contraria de igual para igual, não nos apresenta desafios morais e comportamentais. Face ao animal, continuamos a ser superiores, mas fingimos que somos iguais. É óbvio que a nossa compreensão acerca dos animais evoluiu, já não os consideramos meros seres sem alma e irracionais, hoje atribuímos-lhes emoções, até sentimentos, e funções cerebrais e cognitivas superiores ao que julgávamos. No entanto, o ser humano tem capacidades que o distinguem. O animal vive a realidade, mantém as prerrogativas da natureza, sem ter a consciência ou o espírito crítico para a transformar, essa capacidade reinterpretativa pertence ao humano. O animal utiliza os recursos naturais, o humano cria. A arte e a cultura são fenómenos humanos. O ser humano não vive apenas a realidade, dá-lhe sentido e valor. Só o humano pode intuir a ideia de Deus. Por outro lado, o ser humano pode querer ser deliberadamente ignorante e praticar o mal pelo mal, tornando-o banal. É essa complexidade que nos define.

O narcisismo da sociedade actual, o individualismo radical e generalizado, fez com que a humanidade não evoluísse como era esperado, senão mesmo regredisse. Há umas décadas atrás, quando tanto se fazia e se esperava pelos direitos das mulheres, ninguém acreditaria que estaríamos onde estamos. Em pleno século XXI, as mulheres são agredidas por serem mulheres e são mortas por serem mulheres. Continuamos preferir a Marilyn Monroe a cantar submissa para o Presidente Kennedy do que a Norman Jeane a ler o Ulisses de James Joyce. É preciso resgatar o humano. A humanidade tem de abraçar a sua sombra, a sua finitude, a sua efemeridade, e elevar-se na divindade que arde esquecida si mesma.