terça-feira, 24 de novembro de 2020

A Real Passagem (Poesia)

Allegrain, Etienne, River Landscape, s/d. Paris: Museé du Louvre.


A Real Passagem



O humano vê
                        Noite ou dia

O sábio sente
                        O rio que flui
                                                De noite e dia
 
Deus não vê
                      Nem sente
                                         A noite o dia
                                                                O rio que flui
Pensa em si
                     O pensamento
                                               Da noite ou dia
                                                                           Do rio que flui
Do humano
                     Que vê
                                  E do sábio
                                                     Que sente

E o humano
                      Acredita
                                      E o sábio
                                                       Conhece
O Deus
              Que em si
                                 Pensa
                                            O humano
                                                               O sábio
A noite o dia
                        O rio que flui
                                                 A real passagem
 

 

08/11/2020
RMdF

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Vestal Enigma (Poesia)

Marchesini, Alessandro, Dedication of a New Vestal Virgin, 1710s.
St. Petersburg: The Hermitage.

Vestal Enigma 



Sê a cifra de quem se decifra
De uma mandibular revelação
O virginal enigma do feminino 


03/09/2020
RMdF

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Mito (Poesia)

David, Jacques-Louis, The Combat of Mars and Minerva, 1771. Paris: Musée du Louvre.
https://www.wga.hu/

Mito 


De lonjura o lugar
Electivo mistério 
De o além-tempo
O enigma outrora
O abismo infindo 


30/08/2020 
RMdF

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Sombra (Poesia)


Fuseli, John Henry, The Nightmare, 1781. 
Detroit, Institute of Arts.

Sombra


Fere a vida o sombrio
Negrume um impulso
Tornado carne a vida 


23/06/2020
RMdF

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Sentidos (Poesia)


David, Gerard, Study of Four Heads, c.1500, 
Ottawa: National Gallery of Canada.


Sentidos


Traz o daímon
O ser humano 
Uma potência
De ser a alma 
Um velho deus
Génio demónio 
Ou o demiurgo
Um só destino
Ser da palavra 
Sua passagem 


23/07/2020
RMdF

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Do Tempo a Ausência (Poesia)

Carraci, Annibale, The Choice of Heracles, c. 1596. 
Naples: Museo Nazionale di Capodimonte.

Do Tempo a Ausência


Varrido do tempo
Um esquecimento 
Feito pó as cinzas
De um agora hoje
Doravante perdido 


20/06/2020
RMdF

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Providência (Poesia)

Carponi, Giulio, Liriope Bringing Narcissus before Tiresias, 1660s.
Private Collection https://www.wga.hu/

Providência


Confiando o céu
O eu em si serás
E escrito decreto
Por ti a memória
Da necessidade
Do destino outro
Em ti não criarás 


10/07/2020
RMdF

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Lua Anciã (Poesia)

Friedrich, Caspar David, Man and Woman Contemplating the Moon, c.1824.
Berlin: Nationalgalerie.
https://www.wga.hu/

Lua Anciã


Bruma noite e luar
Da deusa a oração
A dádiva de cantar
Júbilo de ser pagão 


15/08/2020
RMdF

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Sugestão de Leitura: T. E. Lawrence - Os Sete Pilares da Sabedoria



Lawrence, T. E., Os Sete Pilares da Sabedoria.

Tradução: Alda Rodrigues e Marta Mendonça.

Lisboa: Relógio D'Água, 2020.

ISBN: 9789897830631

Páginas: 904

Preço: 24€

sábado, 4 de julho de 2020

Cardinal (Poesia)

Cardinal


No orto a alma
No zénite a luz
De vida a hora
D'um cume alto
Um acto se faz
No final poente 
A morte o outro
Sob a mãe terra
O além da alma
Uma só origem 


26 de Junho de 2020
RMdF


Rafael, Primum Movens, 1509-11.  Vaticano: Stanza della Segnatura, Palazzi Pontifici.
Rafael, Primum Movens, 1509-11. 
Vaticano: Stanza della Segnatura, 
Palazzi Pontifici.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Sugestão de Leitura: Frederico Lourenço - Poesia Grega: De Hesíodo a Teócrito




Lourenço, Frederico, Poesia Grego: De Hesíodo a Teócrito, Edição Bilingue Grego e Português.

Lisboa: Quetzal Editores, 2020.

ISBN: 9789897224768

Páginas: 360

Preço: 19,90€

terça-feira, 23 de junho de 2020

Mimésis (Poesia)

Rembrandt, Harmenszoon van Rijin, Scribe sharpening 
his quill by candlelight, c.1635, 
Weimar: Kunstsammlungen.
https://www.wga.hu/




Mimésis

Textualizada a viagem
Da palavra um êxtase
E de chegada o verbo
Corria da letra a sílaba


6 de Junho de 2020
RMdF

sexta-feira, 12 de junho de 2020

terça-feira, 9 de junho de 2020

No Trono de Eurínome (Poesia)

Francken, Frans II, The Triumph of Neptune and Amphitrite, 
Private collection
https://www.wga.hu/
No Trono de Eurínome

Arconte de espuma e voragem
Eleito senhor do mar sem rosto
Ó tridente servo da deusa ninfa
Rainha da água mãe do tempo
Libertai no nosso fim a origem
Memória longínqua da criação
Da senhora trono seu novo rei
Libertai no nosso fim a origem
Um uterino mar de nascimento
Ó equino servo da deusa sereia
Criadora do mundo do humano
Libertai no nosso fim a origem


4 de Junho 2020
RMdF

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Sugestão de Leitura: Charles Baudelaire - As Flores do Mal


Charles Baudelaire, As Flores do Mal, com prefácio de Paul Valéry.

Tradução: João Moita.

Lisboa: Relógio D'Água, 2020.

ISBN: 9789896419974

Páginas: 392

Preço: 19,50€

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Da Clepsidra o Vendaval (Poesia)

Bellini, Giovanni, The Feast of the Gods, 1514.
Washington: National Gallery of Art.


Da Clepsidra o Vendaval


Entram sem rosto denso
No antiquário da história
Na poeira das afinidades
Nos recantos da alegoria
Recuperando do passado
Das ruínas os estilhaços
Os fragmentos de um ser
Da memória resgatados


19 de Maio de 2020
RMdF

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sugestão de Leitura: Theodor W. Adorno - Aspetos do Novo Radicalismo de Direita



Theodor W. Adorno, Aspetos do Novo Radicalismo de Direita.

Tradução: Marian Toldy e Teresa Toldy

Lisboa: Edições 70, 2020.

ISBN: 9789724423180

Páginas: 86

Preço: 14,90€

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Do Vazio um Haiku (Poesia)

Bril, Paul, Pan and Syrinx, 1620-24.
Paris: Musée du Louvre.


Do Vazio um Haiku


Sem as gentes mar imenso
A paz o grito desesperante
Da desumana e bela cidade


13 de Maio de 2020
RMdF

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Da Tempestade um Haiku (Poesia)

Rubens, Peter Paul , Hero and Leander, c.1605. 
New Haven: Yale University Art Gallery.
https://www.wga.hu/


Da Tempestade um Haiku


Crepitado o vento do norte
De um tempo a passagem
O agora fumegante do chá


9 de Maio de 2020
RMdF

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Criação (Poesia)

Boucher, François, The Birth of Venus, 1740. 
Estocolmo: Nationalmuseum.
https://www.wga.hu/
Criação


Atrás do tempo_________
_______segue a madrugada
No humano a palavra vencida
Agora eleita imagem repetida
Traduzindo de Narciso a água
____________________
Vence pois o autor a obra sua
Tornado ele relíquia a vaidade
_______e perdendo-se hoje
A obra-prima___________
De liberdade origem a criação
____________________
Segue solitário atrás do tempo
O autor a obra uma madrugada


3 de Maio de 2020
RMdF

terça-feira, 5 de maio de 2020

O Castigo de Tirésias (Poesia)

 Pietro della Vecchia, Tiresias transformed into a woman, 1626-1678.
Nantes: Musée d Arts de Nantes.
Fonte

O Castigo de Tirésias


Do falo agora vulva
A ofídia desmedida
Cego o sábio gesto
De Hera a punição
Como mulher viveu
Tirésias o adivinho


26 de Abril de 2020
RMdF

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Sugestão de Leitura: R. Merrill, S. Bizarro, G. Marcelo e J. Pinto - Rendimento Básico Incondicional


Roberto Merrill, Sara Bizarro, Gonçalo Marcelo e Jorge Pinto, 
Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade.

Lisboa: Edições 70, 2019.

ISBN: 9789724422572

Páginas: 274

Preço: 18,90€

sexta-feira, 24 de abril de 2020

De Abril a Maio (Poesia)

De Abril a Maio
Parlamento Potuguês
(Wikipédia)


Confinado o Abril
Imenso é o nome
De ser Liberdade
Nas suas gentes
Ontem o amanhã
Mas na sua casa
Hoje p'ra sempre

De Maio primeiro
Esperança nossa
De labor um leme
Direito a trabalhar
Sem deixar de ser
A luta a dignidade
Em Abril em Maio


19 de Abril de 2020
RMdF

terça-feira, 14 de abril de 2020

Sugestão de Leitura: Maxime Rovere - O Que Fazer dos Estúpidos



Rovere, Maxime, O Que Fazer dos Estúpidos e como deixar de ser um deles.

Tradução: Sarah Adamopoulos

Lisboa: Quetzal, 2020

ISBN: 9729897226038

Páginas: 184

Preço: 16,60€

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Clausura (Poesia)

Caravaggio, St. Francis in Meditation, c.1606. 
Cremona, Museo Civico Ala Ponzone.
https://www.wga.hu/


Clausura


No eremitério da vontade
Guardas em ti a centelha
A dádiva de um regresso
Mas sem aquela vaidade
Que outrora nutria em ti
A cupidez da desmedida
Se de eremita serás a luz
A candeia do alto erguida
O gesto frio desapegado
De silêncio serás palavra
Voz de um outro humano


6 de Abril de 2020
RMdF

quarta-feira, 25 de março de 2020

Quietude (Poesia)

Vouet, Simon, St. Mary Magdalene, 1623-27. 
Rome: Galleria Nazionale d Arte Antica.
https://www.wga.hu/
Quietude


Se viajar
No mundo
Já não podes
Habita apenas
Percorrendo
A imensidão
Do interior

Silencia-te
Concede a paz
Ao teu agora
Não lutes
Contrariado
Contra o tempo
Acolhe como tua
A sua passagem

Amanhã
Noutro mundo
Serás outro
Renovado
Renascido
O Novo Humano


23 de Março de 2020
RMdF

quarta-feira, 18 de março de 2020

Desfeita Ilusão (Poesia)

Delacroix, Eugène, Hamlet and Horatio in the 
Graveyard, 1839. Paris: Musée du Louvre.
https://www.wga.hu/


Desfeita Ilusão


Por terra a sebe alta
Os castelos de vidro
De etéreos demónios
Os firmados artífices
Pastores de ilusões
Por hora esquecidos


11 de Março de 2020
RMdF

terça-feira, 17 de março de 2020

Solitude (Poesia)

Bassetti, Marcantonio, St Antony Reading, s/d. 
Verona, Museo di Castelvecchio.
https://www.wga.hu/


Solitude


Não encontrás caminhando
Fora de ti nas vastas terras
O que ausente permanece
Busca sem o passo inquieto
Centrado no eixo de Sophia
E ensimesmado descobrirás
Como se fosse um tesouro
O silêncio que tanto evitaste


14 de Março de 2020
RMdF

quinta-feira, 5 de março de 2020

Consciência (Poesia)

Boucher, François, The Rising of the Sun, 1753. 
London: Wallace Collection.
https://www.wga.hu/


Consciência


Vento e vertigem
Vislumbre de hoje
Abismo de ontem
De Cintereia lume
De Sileno sombra
Humana margem


24 de Fevereiro de 2020
RMdF

terça-feira, 3 de março de 2020

Kaíros (Poesia)

Bor, Paulus, Ariadne, 1630-35,
Pznan, Muzeum Narodowe
https://www.wga.hu/




Kaíros


Ancorado o ser no tempo
Da humana possibilidade
Seguindo a electiva hora


16/02/2020
RMdF

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Cisne (Poesia)

Cignaroli, Giambettino, Leda and the Swan, s/d.
Colecção Privada
https://www.wga.hu/



Cisne


Arensado o lago a regina ave
De asas erguidas a natureza


30 de Janeiro de 2020
RMdF

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Sugestão de Leitura: Lucano - A Guerra Civil (Farsália)


Lucano, A Guerra Civil (Farsália).

Tradução: Luís Manuel Gaspar Cerqueira.

Lisboa: Relógio D'Água, 2020.

ISBN: 9789896417154

Páginas: 320

Preço: 19,50€

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Cavalo de Tróia (Poesia)

Tiepolo, Domenico, The Procession of the Trojan Horse in Troy, 1773.

Cavalo de Tróia


Arrastada a equina perdição
Recebia a cidade o seu fado
Findo o choque de falanges
E esgotado o bélico embate
Sai de cena a Divina Andreia
E entra a Astúcia a Quimera
Segue pois Príamo pesaroso
Da morte caído nobre Heitor
Esse divino logro de Odisseu
Oferta deles ao deus tridente
Funesta dádiva d'outro cheia
Que por o pórtico convidada
Traz da desmedida a queda



12/02/2020

RMdF

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O Enigma do Feminino (Poesia)


Carracci, Agostino, The Three Graces, sd,
Frankfurt: Städelsches Kunstinstitut.
https://www.wga.hu/


O Enigma do Feminino


Estendida sobre um anel de fada
Em enigma a sombra da mulher
Oculta surge a ménade a vestal



25 de Janeiro de 2020
RMdF

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Esta Noite Sonhei com Dante - Um Conto (Excerto)

Blake, William, The Lovers' Whirlwind, Francesca da Rimini and Paolo Malatesta, 1824-27.
Birmingham: Birmingham Museum and Art Gallery.
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Esta Noite Sonhei com Dante 

- Um Conto –



I


   Maria Clara, inquieta e angustiada, dava voltas na cama. Como uma tempestade revirava os lençóis. Tornava a areia lisa do tecido em dunas íngremes de cobertores e mantas. O seu sono era o de quem leva a bordo a dor no inconsciente e a veleja no mar agitado do sonho e da fantasia. As gotas de suor e lágrimas eram o rio que corria até ao seu corpo, desaguando em tormenta e memória. Com os olhos fechados e a respiração ofegante, a jovem mulher rodava de um lado para o outro. A realidade de quem apenas vê permanecia de pálpebras deitadas e tudo quanto existia era sonho e imaginação, dádiva e desgraça. Maria Clara sonhava com Dante. 


   O segundo círculo do Inferno, mais pequeno que o primeiro, mas maior em sofrimento, era um abismo de dor e um vórtice de expiação. Porém, naquele lugar não existia perdão, nem absolvição. A pena do pecador estendia-se na eternidade. Maria Clara estava encolhida sobre si mesma, de braços cruzados, envolvendo o peito, e levemente curvada, devido à gravidade do espaço. Olhou em frente e viu, não muito longe, o horrível soberano de cauda rodante, o juiz e o carrasco, o senhor que pune, sem compaixão, aqueles que foram entregues ao círculo dos luxuriosos. Os condenados por amor faltoso, por erro do coração, colocados diante da justiça de Minos, desconheciam o seu fado. A sua sentença era volverem-se, girarem sobre si mesmos, num tornado de agonia, juntos, mas sem união, até desesperarem na roda do tempo que não pára. 


   Maria Clara seguiu, a passo tardio, o caminho que temia encontrar. Olhava à sua volta, detinha-se nos casais em pranto, procurando chegar a quem há muito perdera. Aproximou-se mais um pouco, até que, junto dela, estavam duas sombras, as quais observavam e nomeavam o mesmo que a jovem queria ver. Ouviu, da boca do guia, os nomes dos danados. Primeiro as mulheres, a quem o pecado da luxúria é gravemente sancionado e a quem, por norma, se atribui uma pena superior e mais didáctica. Com as palavras do mestre e do seu discípulo, pode identificar Semíramis da Assíria, Dido de Cartago e Helena de Tróia. As três mulheres que em diferentes formas de amar se perderam eram penitentes sem perdão. Os amorosos companheiros também não escaparam da punição que no tempo se arrastava. Aquiles, Páris e Tristão a outros mil se juntaram, seguindo o séquito de luxuriosos a quem o amor fendeu o fio da vida severa. Maria Clara, assistindo à procissão da turba dolorosa, procurava, sem cessar, um casal de amantes que só ali podiam estar, mas as lágrimas que o choro estendia impediam-na de olhar com vagar e pormenor. Diante de si e dos outros viajantes, dois amantes se colocaram, rodando em sofrimento e pesar. Francesca da Polenta e Paolo Malatesta morreram por amar, foram assassinados pelo marido e irmão. Maria Clara perguntava-se que amor era aquele que não permitia amar quem fora amado, mas, sem resposta, sentiu o fraquejar das pernas, o peso sobre os ombros, a queda que ameaçava. A tragédia dos amantes era idêntica à dos seus pais que também foram mortos por amar e, sem perdão, somente no Inferno podiam estar. 


   Maria Clara fixou os olhos daquele que seguia o mestre latino e viu as lágrimas que o tomavam. A dor de Francesca era a sua própria dor, dor essa que era idêntica ao quebranto que a jovem sentia. O sofrimento tomou o corpo e nele se fez raiz. O poeta descrevia o texto como vida, como mestre no caminho, pois indicava e sugeria, por sibilinos oráculos e por sinais de símbolo, analogia e metáfora, o destino que não se podia evitar. A página que ditou o fim de Francesca e Paolo foi a mesma, ou pelo menos um cópia ou adaptação, da que marcou a morte dos seus pais. Maria Clara procurou a memória, o sentido e o valor, mas tudo o que levava consigo era a proximidade da queda, do abismo que inauguralmente se apresentava. A dor dominou a fraqueza de quem via os amorosos em tamanha agonia e pranto e, na impossibilidade de libertar o amor dos seus algozes, a morte tolhia-lhes os membros. O fiorentino escrevente quebrou-se em queda certa e chorou o amor alheio como se o seu próprio coração tivesse sido apartado, arrancado do peito sem bebida forte ou pancada rude. Maria Clara, tal como Dante, caiu no sonho e na vida como um corpo morto cai. A jovem mulher tinha a consciência cristalina que um amor que não nos ergue ao sol e às estrelas só ao Inferno nos pode conduzir e, embora não tivesse visto os seus pais, sabia que seguiriam no séquito dos defuntos do amor.


   Maria Clara acordou do seu sonho como se se estivesse a afogar no mar profundo e fosse resgatada, puxada para cima, por um velho marinheiro que a furtou à morte escrita. Os pulmões negavam o sopro que era dádiva e feriam o peito quando inspirava. A jovem sentou-se na cama, desapertando os botões da camisa de dormir, soltando o pescoço que sufocava. Deixou os seios expostos à noite que fora uma cruel conselheira. O suor corria da testa à foz, humedecendo a roupa e pingando do cabelo. Não fora apenas o que vira que a deixara em sofrimento, foi também o que não vira, o que não disse, o que não pode expressar. A memória implorava por transformação, por justiça ou entendimento. A jovem levantou-se, caminhou para a bacia de água e despejou as conchas das mãos no rosto quente. Molhou o pano bordado e banhou-se de lua e esquecimento.


..... continua 


RMdF

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Erguido o Humano (Poesia)

Rubens, Peter Paul, The Triumph of Victory, c.1614.
Kassel: Staatliche Museen.
https://www.wga.hu/


Erguido o Humano


Erguei-vos etéreos sopros de revolta
Erguei-vos ígneas rochas de assalto
Tornai vosso o gume de uma palavra
A sombra férrea que só vós ergueis
E contra quem do alto ignora e nega
Sê o grito lançado de uma revolução

Erguei-vos cruzes anónimas sem rosto
De incautos e inocentes democratas
Contra as ditaduras de hoje e amanhã
Erguei-vos agora contra a fúria ébria
De vozes desumanamente intolerantes

Erguei-vos servos da impotente inacção
Erguei-vos ó desinteressado auditório
De sensibilidade vazia gelada e casta
De uma castrada conveniente empatia

Erguei-vos gente de caridade pregada
Sem alma ou espírito de transformação
Erguei-vos passivos e ocos cantadores

Erguei-vos crianças senhoras do futuro
Tomai como a vossa a utopia do agora

Erguei-vos hoje esclarecidos humanos



25 de Janeiro de 2020

RMdF

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A Alma das Árvores (Poesia)

Andreescu, Ion, Edge of the Forest, c.1880.
Bucharest: Muzeul National de Arta.
A Alma das Árvores


A alma humana __________
Antes de voltar a ser estrela
Deseja regressar às árvores
Ser raiz e tronco ramo e folha
Ser da natureza a firmada torre
Guardiã da terra senhora do ar
_______________________
E nos seus veios pulsar o tempo
Registar em circundantes anéis
A memória que o humano apaga
__________ a alma das árvores
Acaricia o vento e a brisa quente
E pelo ar espalha-se e semeia-se
Renascendo simples noutro lugar
A serenidade habita a semente
_______________________
E não podendo ser apenas etérea
A alma das árvores é um corpo
Sólido, vivente, que exala o sopro
E verte a seiva _____________
Renova-se no sol novo de cada dia


10/12/ 2018
RMdF

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Sugestão de Leitura: Michelle Dean - De Língua Afiada: Mulheres que fizeram da Opinião uma Ar


Dean, Michelle, De Língua Afiada: Mulheres que fizeram da Opinião uma Ar 
(Susan Sontag, Dorothy Parker, Hannah Arendt, Rebecca West, Joan Didion, 
Mary McCarthy, Pauline Kael, Renata Adler, Janet Malcom e Nora Ephron). 

Tradução: Hélder Moura Pinheiro

LIsboa: Quetzal Editores, 2020.

ISBN: 9789897226069

Páginas: 448

Preço: 19,90€