sábado, 6 de abril de 2013

Um Contributo de Thomas Paine para Actual Situação Política do País

Thomas Paine, no seu livro Direitos do Homem, oferece-nos um importante contributo para actual situação política do país, nomeadamente face à decisão do Tribunal Constitucional em considerar como inconstitucionais quatro artigos do Orçamento de Estado. 

Paine diz que "uma Constituição não é o acto de um governo, mas de um povo que constitui um governo; e um governo sem Constituição é poder sem direito" (126). A Constituição é um acto de um povo que, mediante as condições expressas pela Lei que resulta desse acto, constitui um governo. Ora, a sequência essencial de uma Democracia é Povo, Constituição e Governo. Desta forma, se um Governo procura o primeiro lugar desta sequência, então já não estamos perante um modelo democrático, mas sim envolvidos num regime autoritário. Neste tipo de regime o Governo coloca a constituição e o povo ao seu serviço, de modo a servirem os seus interesses e as suas acções. A pergunta que se coloca é se um Governo, democraticamente eleito, desrespeitar a Constituição, e por consequência o Povo, pois a lei fundamental é produto do acto popular, expressão da sua consciência, não perderá então a sua legitimidade. 

Paine acrescenta um outro elemento a esta questão, ao dizer "que uma nação deveria ter uma Constituição, como regra, para a conduta do seu governo é uma questão simples com a qual todos os homens que não foram cortesãos estarão de acordo" (135). Se pensarmos - ou pelo menos tivermos a esperança - que os cortesãos pertencem ao passado, seja pela distância temporal do regime do monárquico ou pelo afastamento dos homens que participaram na corte política da nossa ditadura, então podemos concluir que a existência de um Constituição é aceite por todos. No entanto, existem alguns que tentam adoptar um outro caminho: mudar a Constituição. Perguntemos então se se espera que o acto popular que dá origem à Constituição seja volátil, ao ritmo das circunstâncias e dos interesses de um determinado momento. Esperamos todos que não, pois se tal acontecesse, então os direitos e garantias de todos os cidadãos tornar-se-iam frágeis, débeis, impossíveis de assegurar. Nalguns dias teríamos uma democracia, assente nos direitos humanos, e noutros teríamos que algo, que alguns continuariam a chamar democracia, mas que na realidade era um forma de tirania. É claro que uma Constituição não deve ser imutável, no entanto, as alterações que nela se introduzam devem respeitar o acto popular, a sua voz, a sua decisão, e não a vontade de uma meia dúzia que quer adaptar o regime às suas necessidades ideológicas. 

A posição do actual governo e de alguns "iluminados" que pairam à sua volta como abutres põem em perigo os valores democráticos e corremos o risco de transformar uma democracia, conquistada pelo desejo popular, numa qualquer forma de oligarquia.

O livro Direitos do Homem de Thomas Paine ajuda-nos a alargar a nossa consciência de cidadãos. Leia-se.   


Thomas Paine

Direitos do Homem

Tradução Maria Isabel Veríssimo

Publicações Europa-América

1998

quinta-feira, 4 de abril de 2013

A Actualidade de O Jantar do Bispo: Reler Sophia

O conto de Sophia de Mello Breyner Andresen, presente nos Contos Exemplares, "O Jantar do Bispo" é de uma enorme actualidade. A realidade que Sophia passou para as suas palavras servia para o país de ontem como serve para o de hoje. O imperativo moral é o mesmo.

"O Jantar do Bispo" começa com uma descrição da casa e das terras que a rodeiam. A frase "quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho" (45) é a síntese inaugural deste texto. A dicotomia entre a riqueza e a pobreza é desenvolvida ao longo do conto. O Dono da Casa precisa da intervenção do Bispo, necessita de um favor, "uma semente de guerra" (46) minou a sua autoridade.O jovem padre, o novo pároco de Varzim contraria a pobreza que se instalara no seu rebanho e, para o Dono da Casa, "a sua presença ia crescendo como uma acusação que o acusava, como um dedo que apontava, como uma espada de fogo que o tocava" (46). O Dono da Casa pensava que o padre se imiscuiu nos seus assuntos e ia para além da sua competência e, ao confrontá-lo com sua posição, o pároco respondeu que "da nossa própria fome (...) podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral" (47). Esta máxima é de tal forma importante que devia ser cravada na cartilha da vida de qualquer pessoa, sobretudo daqueles que tem uma responsabilidade política ou social. "A fome dos outros é um problema moral" fixe-se e use-se como arma da Justiça. 

Para o Dono da Casa, "as suas conveniências, as suas comodidades, as usas vantagens e os seus interesses pareciam-lhe direitos éticos absolutos, princípios sagrados da paz e da ordem" (47), daí que a postura do padre fosse considerada uma afronta, no entanto, o padre era pobre, o que dificultava qualquer acusação que lhe pretendesse fazer. O pároco era um homem insignificante, não era um homem à altura daquele grande homem, habituado a mandar, consagrado pelos ramos de uma família antiga a exercer o seu poder. Porém, ao averiguar a linhagem do seu inimigo, concluiu que "o padre era parente afastado duns seus parentes afastados e que a fome escrita na sua cara não era hereditária, mas sim voluntária" (48). A sua pobreza era um mandamento da sua identidade. O Dono da Casa via nesta opção do padre uma forma de traição, um desafio chocante à ordem estabelecida, ao normal progresso de uma vida abençoada por uma boa família. 

O padre dava tudo o que tinha. Os seus bens, os frutos da sua lavra eram uma dádiva aos outros. O Dono da Casa pensava que isso "era desordem, anormalidade, bolchevismo" (49). Como poderia alguém sair do seu conforto, abandonar o que era seu para dar, para dar aos pobres? Os sermões do padre provocavam-lhe enfado, desprezo, não se revia naquela "esperança num mundo melhor" (49). A sua caridade era da esmola regular. Não era uma palavra viva. 

Os retratos de família, ostentados na casa antiga, consagravam o poder aquela gente, dignificavam o seu rosto no tempo. Era uma tradição que promovia a autoridade. Porém, um certo familiar separava-se daquela aura familiar. "O primo Pedro tinha a sensibilidade certa como a sensibilidade dum artista, tinha a inteligência dum inventor e o espírito de justiça dum revolucionário. Mas em toda a sua vida nada fizera" (53), o que o tornara num pária, num falhado, logo não podia estar naquele jantar, naquela cerimónia que tinha tão alto propósito. "Só tinha convidado gente discreta e segura, com cujo apoio, concordância e silêncio podia contar inteiramente" (54). Quase podíamos pensar que estava a constituir um governo, a elaborar a formação do seu conselho de ministros. O seu objectivo era "explicar claramente que o padre novo era um perigo para a ordem social" (55) e o melhor seria mudá-lo de paróquia. Acreditava que, com as palavras certas - ou o cheque adequado -, o Bispo aceitaria a sua pretensão. 

O Bispo também tinha um pedido a fazer ao Dono da Casa. "Pedir é uma coisa difícil. E tanto mais difícil quanto mais aquele a quem se pede é rico e poderoso. Mas a quem havia de pedir senão aos ricos e poderosos?" (55) O tecto da igreja mais bela da sua diocese estava cair. Noutros tempos, os homens poderosos mandavam erguer igrejas para salvar as suas almas e curar as maleitas dos seus corpos, porém os tempos mudaram. Os remédios de hoje deixavam em ruínas as igrejas de ontem. Sophia escreve, neste contexto, uma frase que é de uma actualidade imensa: "a doença já não igual para pobres e ricos" (56). O dinheiro compra a saúde.

O Bispo acreditava que o Dono da Casa lhe daria o dinheiro necessário para restaurar a igreja, a sua vaidade, a sua fome de fama ia enobrecer a sua virtude. Assim, o Bispo, embora contrariado, seguiu o rumo do repasto. O acaso de uma derrapagem trouxe um outro convidado à mesa. O Homem Importantíssimo juntou-se aos tribunos. É curioso, mas de facto é assim que surgem estes homens. Os homens importantíssimos aparecem sempre devido a uma derrapagem. Este homem ilustre tornou-se o centro das atenções. Bem-falante e afável, criou logo empatia, como aliás o fazem os homens importantes. É então que começa uma amena discussão. O Homem Importante começa por dizer que "este tempo (...) é um tempo de crise: estamos dominados pelo materialismo. Até nos campos, onde só devia reinar a espiritualidade ouvimos constantemente falar de problemas materiais", e continua, afirmando que "o nosso tempo só vê problemas materiais. É um tempo de revolta. Os homens não querem aceitar. Paciência e resignação são palavras que perderam o sentido" (60). Depois, passa para os padres que se vêem imbuídos desse revolta materialista, e a caridade não serve de justificação, pois em nome desse mandamento,  que, segundo o Homem Importante, pode ser interpretado de diversas formas, é possível que se caia no comunismo, veja-se os padres operários.

"O Dono da Casa gostava de estar à mesa com visitas. Nada lhe agradava mais do que dar de comer a quem não tem fome" (63) Parecia aqueles que, nas sombras do poder, se alimentam e, por excesso de fartura, já correm o risco de indigestão. O jantar termina e o Dono da Casa conduz o Homem Importante e Bispo para outra sala. Tinham negócios para fechar. O Dono da Casa dá cinquenta contos e o Homem Importante outros cinquenta. A igreja em ruínas podia agora ter um telhado. E o Padre de Varzim seria forçado a um outro caminho, afastado para uma outra aldeia. Claro está que "ninguém falou em troca nem em venda. Ninguém disse palavras chocantes" (64). É assim que os altos dignitários fazem negócios.

A segunda parte deste conto começa com a cozinheira Gertrudes a abrir a porta da cozinha a um homem. "Não o conhecia, mas nem era preciso perguntar-lhe quem era: era mais um pobre." (67) As criadas tinham ordem para lhe dar de comer, para o levar à mesa dos pobres. O homem queria falar com o Dono da Casa, todavia a cozinheira quis demovê-lo com duas afirmações lapidares: primeiro, "a esmola é ao sábado" (68) e naquele dia não era sábado; e segundo, "as coisas importantes são para as pessoas importantes" (69), logo como poderia o pobre dizer que era importante. O homem insistia, ao que o criado respondeu que um senhor não podia deixar as suas visitas para vir falar com um mendigo, disse "tenha paciência, não pode ser. O mundo é como é. Temos que ter paciência" (70). É como aqueles senhores, titulares de cargos públicos, que nunca podem falar, nem ouvir as pessoas comuns, as suas conversas são reservadas a pessoas importantes.

A casa estava envolta numa grande tempestade. Chuva, relâmpagos e trovões atemorizavam as criadas. O céu falava. A escuridão fechou o espaço e uma criança assustada, filho do Dono da Casa, acabou por ficar em frente do homem que lhe disse vinha da parte do Padre de Varzim. A criança foi contar ao pai, que não quis descer do alto da sala até aos confins da cozinha. João contou ao homem a decisão do Dono da Casa. Os dois despediram-se e o homem saiu. O mendigo não tocara na comida tão caridosamente disposta na mesa dos pobres, e, à semelhança de Deus, rejeitou as ofertas de Caim.

A terceira e última parte do conto traz o maravilhoso a esta narrativa. O Bispo deixa a casa do Dono da Casa e entra no seu automóvel. No meio do caminho, encontrou um mendigo na estrada e o Bispo decidiu levá-lo. Perguntou-lhe para onde ia, a que o mendigo respondeu que ia para casa do Padre de Varzim.  Olhou para o homem, coberto de lama, e viu que "nas mãos havia um gesto de paciência. Um gesto muito antigo de paciência. E de repente pareceu ao velho Bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento, toda a solidão, o olhavam de frente no rosto daquele homem. Coisa difícil de olhar de frente" (80). O Bispo disse que a distância era longa e estrada estava cheia de lama, sugerindo que passasse a noite na sua casa. O homem não respondeu e quando o Bispo ergueu o rosto, o mendigo desaparecera. Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. Por fim, o Bispo iluminou-se com o reconhecimento, sabia agora quem era aquele homem. As palavras, abafadas pelo silêncio, concluíram: "aquilo que eu fiz tem de ser desfeito" (81). O Bispo voltou à Casa Grande, afim de falar com o Dono da Casa e de lhe comunicar que queria desfazer o negócio fechado. Deus viera testemunhar em favor de um homem injustamente acusado e o Bispo foi voz desse testemunho. O Dono da Casa duvidou, não quis acreditar, "estava fechado na certeza dos seus direitos" (82).

O Bispo apresentou, em síntese, o que concluíra: "o padre de Varzim não foi só acusado. Foi também vendido. Vendido pelo telhado de uma igreja. Da Igreja da Senhora da Esperança" (83). O Dono da Casa respondeu, dizendo que "não houve nenhuma venda. Dei uma esmola e fiz, de acordo com a minha consciência, um pedido" (83). O Bispo "estava a trair as regras do jogo" (83) e Dono da Casa não suportava aquela atitude e apenas refreou a sua cólera porque a sua reputação e fama eram mais importantes. Depois, decidiu chamar o outro contribuinte, o Homem Importante. Procuraram. Procuraram. Mas a noite escondeu o homem. O Homem Importante desaparecera e com ele o seu cheque. Todos procuravam o papel, mas nada, não havia sinal do cheque. A criada Júlia conclui que "talvez o diabo o tenha levado" (86). A cozinheira Gertrudes perguntou quem era esse homem e o criado respondeu que "parece que entrou o demónio nesta casa" (86).

O conto termina com frase de Gertrudes: "nos tempos que correm (...) já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se quem puder" (87). Pega num pano e limpa as pegadas do mendigo.

Sophia de Mello Breyner Andresen oferece-nos, pela letra da sua palavra, um conto que viaja no tempo, entra no Estado Novo, passa no Pós 25 de Abril e repousa nos dias de hoje, quando os pobres perdem a esperança e os ricos asseguram os seus "direitos". "O Jantar do Bispo" é um texto actual. Leia-se.




Sophia de Mello Breyner Andresen

"O Jantar do Bispo", pp. 43-87.

Contos Exemplares

Figueirinhas

2006