O livro de João Barrento, O Género Intranquilo - Anatomia do Ensaio e do Fragmento, descreve o que será a realidade estética e formal da literatura e da filosofia para o século XXI, pois, ao traçar a especificidade destes géneros literários, projecta a necessidade textual que é própria da sua natureza. O romance, tal como o conhecemos no século XIX ou em meados do século XX, bem como o tratado filosófico, expresso, em síntese, pelo idealismo alemão, já não podem ser a forma ideal de expressão. As Grandes Guerras e as consecutivas crises financeiras e económicas, a par da degradação das condições sociais e do desprezo instalado face à cultura, anularam a possibilidade de ver o todo. A vida, tal como a conhecemos, é um mar de estilhaços dispersos, um espelho partido que impede o olhar. Logo, nesta realidade despedaçada, o que o resta é a sugestão e a projecção de um sentido. Este resto que permanece humano pode ser expresso, traduzido em texto, pelo ensaio e pelo fragmento, géneros que não se fecham em si mesmos, mas que produzem uma teia de afinidades que revela uma imagem do todo.
Segundo João Barrento, "o ensaio faz-se a bordo dos dias. E a bordo dos livros, na leitura acidental, mais do que a dirigida" (17). O ensaio não suspende a vida, alimenta-se dela e transforma-a em texto. "A vida do ensaio nasce de um névoa que se aclara" (21). Essa neblina que é a génese do ensaio tem a sua origem na própria vida, nas leituras que esboçam e delineiam novas leituras. O ensaio manifesta o fio de vida que une todas as coisas e sugere uma visão holística, na qual o limite da palavra, do texto ofertado, conduz-nos, inevitavelmente, para uma imagem de totalidade. O silêncio, o enigma que encerra o mistério, e a revelação que não se limita ao se que lê, mas que se eleva na sugestão de uma nova viagem, são a natureza essencial do ensaio e do fragmento.
O autor diz que "no fragmento, a linguagem não fala, mas nomeia" (70) e é essa invocação do nome, enquanto síntese daquilo a que se refere, que nos transporta para além do texto, da palavra cantada. O fragmento não gera concórdia, nem promove uma unidade harmoniosa, a sua natureza confessa a discórdia, a tensão entre os opostos, a permanência de tudo o que existe nesse conflito de contrários. A unidade, o todo, esconde-se, vela-se nessa razão divina, nesse Logos que oculta, numa tecedura, a guerra que liga os opostos.
O que encontramos na leitura de Heraclito, de Montaigne, de Schlegel, de Novalis, de Benjamin, de Llansol e de tantos outros é essa plena expressão do fragmento e do ensaio. Neles, o texto é uma imagem de um livro total, único, o qual se estende, de página em página, de ensaio em ensaio, de fragmento em fragmento, num livro do mundo. A totalidade é alcançada pelo aceno, pelo vislumbre, pela semente que se reproduz.
A leitura de O Género Intraquilo não se esgota, pois existe uma necessidade constante de reler, de voltar atrás, de deter uma frase ou uma citação, de pensar o que foi dito, ou, melhor dizendo, nomeado. Leia-se.
João Barrento
O Género Intranquilo - Anatomia do Ensaio e do Fragmento
Assírio & Alvim
2010
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