As manifestações populares dos últimos anos, sobretudo a de Setembro do ano passado e a de Março deste ano, lançaram um conceito para a agenda e para a análise política: "as ruas". A utilização deste termo foi utilizada em diversos comentários, os quais, na maior parte dos casos, expressaram uma dicotomia entre "as ruas", por um lado, e a classe política, por outro. Ora esta distinção parece criar um hiato entre a população eleitora e os políticos eleitos, quase como se falasse de duas realidades distintas. "A rua" pressupõe um exterior, algo que está fora, em oposição ao que está dentro, ao que pertence ao interior da coisa política. No entanto, esta distinção revela um profundo desprezo, ou ignorância, pelos valores democráticos, pela própria noção de democracia. Se este regime político assenta no poder do povo, dos cidadãos, então não se compreende como é que aqueles a quem pertence o poder podem ser votados ao exterior, a algo que está distanciado dos púlpitos do poder democrático. Parece estranho que num país que lutou contra a ditadura, vencendo-a, tenha agora políticos que dizem que não se deixam influenciar pelas ruas, que continuam a acção traçada independentemente da contestação dos eleitores.
A questão em volta do conceito "as ruas" põe em causa o princípio da representação e contrária os primeiros dois artigos da Constituição (Artigo 1º "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária" e Artigo 2º "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa"). A pergunta que se coloca é como pode uma democracia representativa e participativa ser viável, quando se promove esta distinção entre "as ruas" e os actores políticos. Devemos até ser levados a pensar e questionar o próprio valor da representação. Quando alguém é eleito para um cargo político quem é que esta representar? O partido político a que pertence? Os amigos que o promoveram no interior do partido? Aqueles que patrocinaram a sua campanha? Os lobbies que o sustentam? Ou aqueles que o elegeram? Ou, em última análise, toda a população portuguesa? Segundo a Constituição, é tarefa do Estado "Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais" (Artigo 9º, alínea c). Logo, é de todo impensável que se limite a acção participativa dos cidadão, pois se tal acontecer todo o sistema é posto em causa e então os cidadãos têm um direito que a própria Constituição prevê, o da resistência, diz o texto que "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública" (Artigo 21º). "As ruas" têm o direito e o dever de assegurarem o seu bem-estar (direitos, liberdades e garantias) e de promoverem uma qualquer forma de resistência que defenda um compromisso com a verdade.
O livro de Hannah Arendt, Verdade e Política, oferece-nos uma enorme luz nesta matéria e, embora tenha sido escrito com um propósito específico, o seu texto concede-nos uma análise muito lúcida. A filósofa diz que "as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão do político e demagogo, mas também na de homem de estado" (9). Pensemos. A resistência não se afirma, com frequência, quando os cidadãos se sentem defraudados, enganados, privados da verdade? Não existe, por vezes, um espaço imenso entre a promessa, o que se diz que se vai fazer, ou que se fez, e acção que depois se executa? Hannah Arendt continua e diz que "a opinião e não a verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder" (17). Não sentimos, com frequência, que nos dizem algo como sendo a verdade, a necessidade inabalável, e depois concluímos que aquilo que é expresso como certo não passa de um opinião, de uma visão de mundo, de uma ideologia? E não é a representação pura uma forma de contrariar esta subjectividade opinativa? Porque, como diz Arendt, "o pensamento político é representativo. Eu formo uma opinião considerando uma questão dada sob diferentes pontos de vista, e tendo presente ao espírito as posições daqueles que estão ausentes; quer dizer represento-os" (28-9). O político eleito deve ter essa capacidade de tornar presentes aqueles que estão ausentes, ou seja, é mandatado para representar a totalidade dos eleitores, não se elege a si mesmo, mas é a voz daqueles que nele depositaram a sua palavra. A autora dá o seguinte conselho: "o verdadeiro processo de formação de opinião é determinada por aqueles em lugar dos quais alguém pensa e o usa o próprio espírito, e a única condição para esse emprego da imaginação é a de ser desinteressado, estar liberto dos seus interesses privados" (29). Esse desinteresse, essa liberdade face a qualquer constrangimento, seja pessoal, partidário ou financeiro, é o que pode formar um verdadeiro representante do povo e conferir-lhe uma independência na sua faculdade do julgar, já que a "qualidade de uma opinião, tanto como a de um julgamento, depende do seu grau de imparcialidade" (30). Então, como pode alguém ser imparcial se está dependente de uma agenda, de rumo inalterável?
Hannah Arendt alerta, neste pequeno livro, para o risco da mentira politica e diz que "a possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos factos" (47), porém, refere também que "a persuasão e a violência podem destruir a verdade, mas não podem substituí-la" (53). É na sede essencial do poder democrático, "nas ruas", que se deve alicerçar a resistência de defender a verdade e de com lucidez contrariar a manipulação imposta. Verdade e Política é um livro que se deve ler. Leia-se.
O livro de Hannah Arendt, Verdade e Política, oferece-nos uma enorme luz nesta matéria e, embora tenha sido escrito com um propósito específico, o seu texto concede-nos uma análise muito lúcida. A filósofa diz que "as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão do político e demagogo, mas também na de homem de estado" (9). Pensemos. A resistência não se afirma, com frequência, quando os cidadãos se sentem defraudados, enganados, privados da verdade? Não existe, por vezes, um espaço imenso entre a promessa, o que se diz que se vai fazer, ou que se fez, e acção que depois se executa? Hannah Arendt continua e diz que "a opinião e não a verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder" (17). Não sentimos, com frequência, que nos dizem algo como sendo a verdade, a necessidade inabalável, e depois concluímos que aquilo que é expresso como certo não passa de um opinião, de uma visão de mundo, de uma ideologia? E não é a representação pura uma forma de contrariar esta subjectividade opinativa? Porque, como diz Arendt, "o pensamento político é representativo. Eu formo uma opinião considerando uma questão dada sob diferentes pontos de vista, e tendo presente ao espírito as posições daqueles que estão ausentes; quer dizer represento-os" (28-9). O político eleito deve ter essa capacidade de tornar presentes aqueles que estão ausentes, ou seja, é mandatado para representar a totalidade dos eleitores, não se elege a si mesmo, mas é a voz daqueles que nele depositaram a sua palavra. A autora dá o seguinte conselho: "o verdadeiro processo de formação de opinião é determinada por aqueles em lugar dos quais alguém pensa e o usa o próprio espírito, e a única condição para esse emprego da imaginação é a de ser desinteressado, estar liberto dos seus interesses privados" (29). Esse desinteresse, essa liberdade face a qualquer constrangimento, seja pessoal, partidário ou financeiro, é o que pode formar um verdadeiro representante do povo e conferir-lhe uma independência na sua faculdade do julgar, já que a "qualidade de uma opinião, tanto como a de um julgamento, depende do seu grau de imparcialidade" (30). Então, como pode alguém ser imparcial se está dependente de uma agenda, de rumo inalterável?
Hannah Arendt alerta, neste pequeno livro, para o risco da mentira politica e diz que "a possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos factos" (47), porém, refere também que "a persuasão e a violência podem destruir a verdade, mas não podem substituí-la" (53). É na sede essencial do poder democrático, "nas ruas", que se deve alicerçar a resistência de defender a verdade e de com lucidez contrariar a manipulação imposta. Verdade e Política é um livro que se deve ler. Leia-se.
Hannah Arendt
Verdade e Política
Tradução Manuel Alberto
Relógio D'Água
1995
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