sábado, 16 de março de 2013

A Máxima de Bartleby: "Prefiro não o fazer"

Melville, em Bartleby, o Escrivão, expressou uma categoria filosófica que pode também ser entendida como um modo último de vida. A impotência, a não-potência, o acto de contrariar a acção impõe-se como possibilidade, como uma permanência na possibilidade. O dizer "Prefiro não o fazer" é o baluarte supremo da resistência, revela que pode, mas prefere não o fazer. Existe aqui uma deliberação, uma escolha que, embora impeça o acto, a realização, não deixa de ser activa.  

Agamben, no ensaio "Sobre o Que Podemos Não Fazer" (57-9), diz que "o homem é, por conseguinte, o ser vivo que, existindo sob o modo da potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, trate-se de fazer ou de não fazer" (58). A potência, a dinâmica que exige o acto, que força a realização vê na impotência uma forma de resistência, de contrário. Melville escreve: "de início, Bartleby produziu uma enorme quantidade de escrita. Como se estivesse faminto de copiar, parecia empanturrar-se com os meus documentos. Não havia pausas para a digestão. Trabalhava dia e noite, sem parar, copiando à luz do Sol ou de uma vela. Eu ter-me-ia deliciado com a sua aplicação caso a sua diligência fosse animada. Mas ele escrevia em silêncio, sem brilho, mecanicamente" (31). Nesta passagem, podemos destacar alguns aspectos: em primeiro lugar, o verbo copiar, Bartleby não cria, não gera, copia, transporta, de um lado para o outro, o texto já existente; em segundo lugar, o trabalho contínuo, a acção sem suspensão, sem alternância; e, em terceiro lugar, a mecanicidade do acto de copiar, o silêncio que é a repetição do mesmo, o brilho que falta, a alegria que está ao ausente. É face a este trabalho que Bartleby opta por não o fazer, por se recusar, constantemente, a desempenhar as acções solicitadas pelo patrão, que diz "tivesse eu notado o mais pequeno desassossego, zanga, enfado ou impertinência na sua atitude, por outras palavras, tivesse existido o mínimo vestígio de humanidade nele, sem dúvida que o teria expulsado com violência das minhas instalações" (33). Bartleby, no seu acto de não fazer, anula-se como humano, priva-se de sentir. O escrivão repete a não-dinâmica, a impossibilidade que a sua escolha gerou. Em última análise, Bartleby cria pela primeira vez, do seu acto criativo produz a não-acção.

Esta máxima é extremamente perigosa para a ordem social, pois, por um lado, implica um acto axiológico, uma atribuição de valor, e, por outro, rejeita o valor que confere à realidade, afasta-se dela, distancia-se, escolhe não intervir. Esta impotência é o estágio último de uma greve de zelo. O trabalhador cumpre o dever de estar no local de trabalho, mas não executa os procedimentos solicitados. No entanto, a sua postura não é de provocação, é sim de negação. Pensamos, com frequência, que a resistência está na acção, no movimento, todavia, esta forma de resistência é desconcertante, priva a realidade do seu sentido, pois não é reacção, luta de contrários, é um revogar deliberado da possibilidade de fazer, o que põe em causa a interacção social. 

Bartleby, o Escrivão de Melville e "Sobre o que Podemos Não Fazer" de Agamben são duas leituras interessantes que nos abrem a mente para um outra possibilidade. Leia-se.


Herman Melville

Bartleby, o Escrivão

Tradução Maria João da Rocha Afonso

Editorial Presença

2009






Giorgio Agamben

"Sobre o Podemos Não Fazer", pp. 57-59

Nudez

Tradução Miguel Serras Pereira

Relógio D'Água

2010      

quinta-feira, 14 de março de 2013

Acerca "Das Ruas": A Representação entre a Verdade e a Política

As manifestações populares dos últimos anos, sobretudo a de Setembro do ano passado e a de Março deste ano, lançaram um conceito para a agenda e para a análise política: "as ruas". A utilização deste termo foi utilizada em diversos comentários, os quais, na maior parte dos casos, expressaram uma dicotomia entre "as ruas", por um lado, e a classe política, por outro. Ora esta distinção parece criar um hiato entre a população eleitora e os políticos eleitos, quase como se falasse de duas realidades distintas. "A rua" pressupõe um exterior, algo que está fora, em oposição ao que está dentro, ao que pertence ao interior da coisa política. No entanto, esta distinção revela um profundo desprezo, ou ignorância, pelos valores democráticos, pela própria noção de democracia. Se este regime político assenta no poder do povo, dos cidadãos, então não se compreende como é que aqueles a quem pertence o poder podem ser votados ao exterior, a algo que está distanciado dos púlpitos do poder democrático. Parece estranho que num país que lutou contra a ditadura, vencendo-a, tenha agora políticos que dizem que não se deixam influenciar pelas ruas, que continuam a acção traçada independentemente da contestação dos eleitores.  

A questão em volta do conceito "as ruas" põe em causa o princípio da representação e contrária os primeiros dois artigos da Constituição (Artigo 1º "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária" e Artigo 2º "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa"). A pergunta que se coloca é como pode uma democracia representativa e participativa ser viável, quando se promove esta distinção entre "as ruas" e os actores políticos. Devemos até ser levados a pensar e questionar o próprio valor da representação. Quando alguém é eleito para um cargo político quem é que esta representar? O partido político a que pertence? Os amigos que o promoveram no interior do partido? Aqueles que patrocinaram a sua campanha? Os lobbies que o sustentam? Ou aqueles que o elegeram? Ou, em última análise, toda a população portuguesa? Segundo a Constituição, é tarefa do Estado "Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais" (Artigo 9º, alínea c). Logo, é de todo impensável que se limite a acção participativa dos cidadão, pois se tal acontecer todo o sistema é posto em causa e então os cidadãos têm um direito que a própria Constituição prevê, o da resistência, diz o texto que "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública" (Artigo 21º). "As ruas" têm o direito e o dever de assegurarem o seu bem-estar (direitos, liberdades e garantias) e de promoverem uma qualquer forma de resistência que defenda um compromisso com a verdade.

O livro de Hannah Arendt, Verdade e Política, oferece-nos uma enorme luz nesta matéria e, embora tenha sido escrito com um propósito específico, o seu texto concede-nos uma análise muito lúcida. A filósofa diz que "as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão do político e demagogo, mas também na de homem de estado" (9). Pensemos. A resistência não se afirma, com frequência, quando os cidadãos se sentem defraudados, enganados, privados da verdade? Não existe, por vezes, um espaço imenso entre a promessa, o que se diz que se vai fazer, ou que se fez, e acção que depois se executa? Hannah Arendt continua e diz que "a opinião e não a verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder" (17). Não sentimos, com frequência, que nos dizem algo como sendo a verdade, a necessidade inabalável, e depois concluímos que aquilo que é expresso como certo não passa de um opinião, de uma visão de mundo, de uma ideologia? E não é a representação pura uma forma de contrariar esta subjectividade opinativa? Porque, como diz Arendt, "o pensamento político é representativo. Eu formo uma opinião considerando uma questão dada sob diferentes pontos de vista, e tendo presente ao espírito as posições daqueles que estão ausentes; quer dizer represento-os" (28-9). O político eleito deve ter essa capacidade de tornar presentes aqueles que estão ausentes, ou seja, é mandatado para representar a totalidade dos eleitores, não se elege a si mesmo, mas é a voz daqueles que nele depositaram a sua palavra. A autora dá o seguinte conselho: "o verdadeiro processo de formação de opinião é determinada por aqueles em lugar dos quais alguém pensa e o usa o próprio espírito, e a única condição para esse emprego da imaginação é a de ser desinteressado, estar liberto dos seus interesses privados" (29). Esse desinteresse, essa liberdade face a qualquer constrangimento, seja pessoal, partidário ou financeiro, é o que pode formar um verdadeiro representante do povo e conferir-lhe uma independência na sua faculdade do julgar, já que a "qualidade de uma opinião, tanto como a de um julgamento, depende do seu grau de imparcialidade" (30). Então, como pode alguém ser imparcial se está dependente de uma agenda, de rumo inalterável?

Hannah Arendt alerta, neste pequeno livro, para o risco da mentira politica e diz que "a possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos factos" (47), porém, refere também que "a persuasão e a violência podem destruir a verdade, mas não podem substituí-la" (53). É na sede essencial do poder democrático, "nas ruas", que se deve alicerçar a resistência de defender a verdade e de com lucidez contrariar a manipulação imposta. Verdade e Política é um livro que se deve ler. Leia-se.




Hannah Arendt

Verdade e Política

Tradução Manuel Alberto

Relógio D'Água

1995
          

terça-feira, 12 de março de 2013

Kierkegaard: Do Dinamarquês para o Português

O Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, em parceria com editora Relógio D'Água, tem desenvolvido um projecto de tradução e de edição da obra de Kierkegaard. Até Novembro de 2009, este projecto ficou restrito ao Centro de Filosofia, porém, a partir dessa data, o público em geral pode acender, com relativa facilidade, a obra deste filósofo. A Relógio D'Água deu à estampa, no final do mesmo ano, duas obras: Temor e Tremor (Tradução de Elisabete M. de Sousa) e A Repetição (Tradução de José Miranda Justo).

Neste projecto, é de destacar a importância da tradução. Os textos de Kierkegaard foram traduzidos do original, em dinamarquês. Esta tarefa árdua, que implicou a aprendizagem da língua, possibilitou ao leitor português ler uma tradução que não passa por uma língua intermédia, habitualmente o inglês. No entanto, este esforço de tradução já tinha sido iniciado com duas outras obras: In Vino Veritas (Tradução de José Miranda Justo, Antígona, 2005) e Adquirir a sua Alma na Paciência (Tradução de Nuno Ferro e de Mário Jorge de Carvalho, Assírio & Alvim, 2007). 

Este tipo de tradução é fundamental para a cultura portuguesa, pois se queremos entrar numa realidade editorial e académica, que noutros países tem décadas de avanço, temos de superar os esforços que até aqui têm sido desenvolvidos. É preciso fazer mais. Não se justifica que só no início do século XXI possamos ler estas obras a partir do original. Kierkegaard é uma presença incontestável na história da filosofia contemporânea e, a par de Nietzsche, os seus textos revelam, para além do pensamento filosófico, uma beleza literária digna de uma leitura dedicada, atenta e surpreendente. 

Em Temor e Tremor, Kierkegaard parte do desmame da criança e da Aquedah, do sacrifício de Isaac, para uma teoria do amor, em todas as suas variantes. Johannes de silentio (pseudónimo do autor) expressa, enquanto poeta, um elogia de Abraão, diz que "aquele que se amou a si próprio tornou-se grande pelos seus próprios meios, e aquele que amou outros homens tornou-se grande pela sua dedicação, mas aquele que amou a Deus tornou-se maior que todos" (113, 66) e sintetiza que "o que se retira da história de Abraão é a angústia" (124, 81). De seguida, Kierkegaard, depois da "Expectoração preliminar", desenvolve a análise deste episódio bíblico, recorrendo a uma erudição, fértil em referências, que provoca no leitor um mistura de entusiasmo e assombro. Os três problemas (Haverá uma suspensão teleológica do ético?, Haverá um dever absoluto para com Deus? e Terá sido eticamente defensável da parte de Abraão ter mantido silêncio sobre o seu propósito perante Sara, Eliesar e Isaac?) terminam com um epílogo que fecha com uma referência a Heraclito, a mesma que nos conduz, inevitavelmente, para outro texto de Kierkegaard, A Repetição.

Em A Repetição, Constantin Constantius (pseudónimo do autor) desenvolve essa máxima, atribuída a Heraclito, que defende o movimento perpétuo, ou, em última análise, a anulação do próprio movimento. O conceito de repetição é a chave dessa análise de Kierkegaard que diz que "a vida é toda ela uma repetição" (9, 32), mostrando que a repetição e a recordação indicam o mesmo movimento, embora em direcções opostas. Segundo o autor, "aquele que apenas quer ter esperança é cobarde; aquele que apenas quer recordar é voluptuoso; mas aquele que quer a repetição é um homem, e quanto mais energicamente for capaz de a tornar clara para si próprio, tanto maior será a sua profundidade como criatura humana" (10, 32), daí que diga que "a repetição é e permanecerá transcendência" (57, 91). A análise que Kierkegaard faz deste conceito merece ser lida e relida e não apenas pelo leitor familiarizado com os temas filosóficos, visto que é uma realidade que se aplica a própria vida, independentemente da teorização que sobre ela se faça. 

A edição da obra de Kierkegaard não ficou por estas duas obras. Em 2012, saiu as Migalhas Filosóficas (Tradução de José Miranda Justo) e, em 2013, saiu a primeira parte de Ou-Ou - Um Fragmento de Vida (Tradução de Elisabete M. de Sousa). No primeiro texto, Climacus (pseudónimo do autor) começa com uma análise do modelo socrático de maiêutica, com relação entre mestre e discípulo, para, na segunda parte, desenvolver a sua teoria de amor de Deus pelo ser humano, a qual conduz, na terceira parte, para o conceito de paradoxo e para impossibilidade da ideia de verdade socrática e para anulação da sua metodologia. Em última análise, conclui que a verdade não reside no interior de cada um, mas sim num Outro que totaliza a verdade e a eternidade. 

 No entanto, é na obra Ou-Ou que devemos focar a nossa atenção, visto que a mesma não conhecia uma edição integral na nossa língua, apenas o capítulo "Diapsalmata" tem uma edição portuguesa, também ela do dinamarquês, traduzida por Nuno Ferro e por Mário Jorge de Carvalho, pela Assírio & Alvim, em 2011. É uma obra heterogénea, atribuída ao autor A, e com uma enorme riqueza literária. Neste texto, encontramos reunidas a maioria das categorias desenvolvidas pelo filósofo. Seria impossível sintetizar aqui toda a abrangência desta obra, daí que o melhor que o leitor pode fazer é lê-la, surpreender-se-á. Leia-se.




Kierkegaard

Temor e Tremor

Tradução Elisabete M. de Sousa

Relógio D'Água

2009


     

  

Kierkegaard

A Repetição

Tradução José Miranda Justo

Relógio D'Água

2009






Kierkegaard

Migalhas Filosóficas

Tradução José Miranda Justo

Relógio D'Água

2012






Kierkegaard

Ou-Ou - Um Fragmento de Vida (Primeira Parte)

Tradução Elisabete M. de Sousa

Relógio D'Água

2013

quarta-feira, 6 de março de 2013

Para uma Leitura dos Clássicos

A leitura do ensaio "O Que é um Clássico" (1945) de T. S. Eliot, bem como do ensaio "Porquê Ler os Clássicos" (1981) de Italo Calvino, ajudam-nos a compreender a natureza de um clássico. 

T. S. Eliot começa por dizer que "a palavra tem, e continuará a ter, vários significados em vários contextos" (129). O autor anula, de imediato, dois significados para este termo. Eliot não se quer referir a um clássico como referente aos textos gregos e  latinos do período chamado clássico, nem do clássico como oposição ao romântico. A sua definição de clássico assenta, principalmente, em três conceitos. O primeiro é a maturidade. "Um clássico só pode ocorrer quando uma civilização atingiu a maturidade; quando uma língua e uma literatura atingiram a maturidade; e deve ser a obra de um espírito que atingiu a maturidade" (131). Eliot, de seguida, refere o segundo conceito que define um clássico, a compreensividade, e diz que "o clássico perfeito deve ser um clássico em que todo o génio de um povo está latente, se não todo revelado; e que só pode aparecer numa língua tal que todo o seu génio possa estar estar presente ao mesmo tempo. Devemos, por consequência, acrescentar à nossa lista de característica do clássico a da sua compreensividade" (142). E, por fim, o último conceito que define o clássico é a universalidade. "Quando uma obra literária possui, para além da compreensividade em relação à sua própria língua, igual significado em relação a um certo número de literaturas estrangeiras, podemos dizer que tem igualmente universalidade" (142). Em síntese, T. S. Eliot diz que "o nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é Virgílio" (145). No entanto, é importante referir que, neste ensaio, o autor norte-americano apresenta um expresso grau de subjectividade nas suas escolhas, ou referências, por exemplo não considera que a obra de Goethe se inclui no conceito de universalidade, bem como, nesta definição de clássico, conclui que as obras de Homero, a Ilíada e a Odisseia, são inferiores às de Virgílio. 

Já Italo Calvino apresenta catorze propostas de definição para um clássico, as quais passamos a enumerar:
  1. Os Clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: "Estou a reler" e nunca "Estou a ler..." (7).
  2. Chamam-se clássicos os livros que constituem uma riqueza para quem os leu e amou; mas constituem uma riqueza nada menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas condições melhores para os saborear (8).
  3. Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quando se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória mimetizando-se de inconsciente colectivo ou individual (8).
  4.  De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira (9).
  5. De um clássico toda a primeira leitura é na realidade uma releitura (9).
  6. Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer (9).
  7. Os clássicos são os livros que nos chegam trazendo em si a marca das leituras que antecederam a nossa e atrás de si a marca que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes) (9).
  8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles (10).
  9. Os clássicos são livros que quanto mais se julga conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inéditos ao lê-los de facto (10).
  10. Chamam-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talismãs (11).
  11. O nosso clássico é o que não nos pode ser indiferente e que nos serve para nos definirmos a nós mesmos em relação e se calhar até em contraste com ele (11).
  12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu primeiro os outros e depois lê esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia (11).
  13. É um clássico o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo (12).
  14. É um clássico o que persistir como ruído de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatível (12).
 Segundo Calvino, um clássico manifesta-se pela releitura, pelo enriquecimento do leitor, pela influência que exerce, pela novidade, pelo reconhecimento, por ser inesgotável, por ser fértil em referências, por ser passível de inúmeras críticas e comentários, mas, por outro lado, se manter independente, por ser uma imagem do universo, por promover o conhecimento de nós mesmos, seja pela semelhança ou pela diferença,     por ocupar o seu lugar num fio temporal e temático de outros clássicos, e por se manter vivo face a qualquer actualidade e interagindo com esta. O autor italiano diz "os clássicos servem para compreender quem somos e aonde chegámos" e termina, concluindo que "a única razão que se pode aduzir é que ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos" (13).

Nos dias de hoje, o mercado livreiro assumiu uma ditadura da novidade e do best seller. As livrarias, sobretudo as grandes superfícies e as que pertencem aos grandes grupos editoriais e livreiros, focam-se nestes livros de grande rotação que saem do prelo hoje e amanhã são esquecidos, são substituídos por outros, porém, existem alguns que permanecem, como "bestas céleres", que, com a ajuda dos media, do passa-palavra, da moda que se opõe, são constantemente repostos. No entanto, mesmo esses têm uma morte anunciada, acabam por ser ultrapassados por outros que, por sorte, mérito, ou publicidade agressiva, se vêem a revelar como mais populares. Todos estes livros têm como maior temor a ordem tempo. O seu fado predeterminado é serem apagados da memória, seja em meses, anos, décadas ou séculos. A moda passa, é ultrapassada por outra e acabam por cair no esquecimento. No entanto, os clássicos tem a capacidade de permanecerem, de serem long sellers, daí que, nos últimos anos, algumas editoras apostem nestes livros intemporais. O leitor tornou-se mais exigente e agora os clássicos que saem da estampa tem mais qualidade gráfica, melhores traduções e uma melhor divulgação, todavia, nalgumas livrarias, a sua expressão ainda é exígua, realidade esta que contraria a procura de muitos leitores. A leitura dos clássicos é cada vez mais abrangente, já não se limita a uma pequena elite. Porém, não se deve considerar o aumento de leitores como uma conquista definitiva, pois o papel do educador é fundamental para estes números continuem a crescer. Deve-se, portanto, incutir nos estudantes a leitura destes textos, para que, no futuro, os releiam e os adoptem como seus. Por outro lado, os governantes devem extrair destes bens culturais o valor que lhes é devido, fomentando também a sua leitura. 

Um país e um povo podem ser reconhecidos pelas suas leituras e face aos clássicos o melhor é lê-los. Leia-se.   



T. S. Eliot

Ensaios Escolhidos

"O Que é um Clássico", pp. 129-46.

Tradução Maria Adelaide Ramos

Livros Cotovia

1992 




Italo Calvino

Porquê Ler os Clássicos?

"Porquê Ler os Clássicos?", pp. 7-13

Tradução José Colaço Barreiros

Editorial Teorema

1994

segunda-feira, 4 de março de 2013

A Liberdade como Necessidade

A manifestação de sábado exalta a necessidade que é a liberdade. Exprimir a individualidade, o desejo de realização pessoal e a vontade de felicidade é uma garantia do estado democrático, assente em princípios como a liberdade e a igualdade. O cidadão têm o direito natural de assegurar o seu bem-estar e o daqueles que lhe são próximo e a Democracia, enquanto governo dos muitos, do povo, tem o dever de promover o bem-estar comum. Ora, se as pessoas vêem ameaçada essa dinâmica democrática de cultivar o bem-estar e, em última análise, a felicidade, então, em nome da liberdade, devem expressar, sem constrangimentos, essa ruptura na representatividade, ou seja, aqueles que foram eleitos, aqueles que exercem um autoridade que lhes foi atribuída vêem a sua legitimidade frustrada, pois quebraram esse dever fundamental, o de promover a felicidade dos seus eleitores.  

Podemos sugerir a leitura de dois livros que sintetizam, no texto, essa necessidade de liberdade. Falamos de Areopagítica - Discurso sobre a Liberdade de Expressão, de John Milton, e de Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill. 

Milton, no discurso apresentado no parlamento, argumenta e conclui que a liberdade de expressão de não assenta apenas num imperativo democrático, económico ou utilitário, mas sim na própria dignidade humana, no centro racional e espiritual que garante qualquer produção intelectual, cultural ou moral. O autor diz, a respeito do livro, que "se não se usar cautela, matar um bom livro é quase o mesmo que matar uma pessoa. Quem mata um homem mata uma criatura racional feita à imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro mata a própria razão, mata a imagem de Deus, como se esta estivesse nos olhos" (28). Este ideia, que se refere ao livro, mas que se pode aplicar a qualquer ideia expressa,  é fundamental para preservar a liberdade, visto que a destruição, constrangimento ou censura, aplicados a qualquer ideia expressa, revelam uma degradação da dignidade humana e do seu carácter racional.

Stuart Mill desenvolve as ideias iniciadas por Milton. O filósofo inglês diz que "a liberdade de opinião e a liberdade de expressar opiniões são necessárias para o bem-estar mental da humanidade (do qual todo o seu restante bem-estar depende)" (100). A verdade pode estar presente em qualquer ideia, inclusive na que se quer silenciar, e a opinião geral ou a opinião que resulta da autoridade vigente não têm, necessariamente, de reproduzir a totalidade da verdade. Esta opinião pode indicar uma verdade parcial ou uma falsidade, deliberada ou ignorante, a qual em nada fica prejudicada que se se mostrar disponível ao enriquecimento da opinião contrária. Logo, a liberdade de expressão é uma garantia essencial, um princípio utilitário que conduz ao enriquecimento do ser humano. O progresso, o caminho da verdade pode ser alcançado através da liberdade, já que a disponibilidade intelectual de aceitar e de assimilar uma opinião contrária, a qual contribui com sua porção de verdade, garante o desenvolvimento da humanidade. 

A leitura destes dois textos fortalece a argumentação de que a liberdade é uma necessidade. Leia-se.



John Milton

Areopagítica - Discurso sobre a Liberdade de Expressão

Tradução Benedita Bettencourt

Edições Almedina

2009






John Stuart Mill

Sobre a Liberdade

Tradução Pedro Madeira

Edições 70

2006

sexta-feira, 1 de março de 2013

Um Fragmento é Tudo o que Resta

O livro de João Barrento, O Género Intranquilo - Anatomia do Ensaio e do Fragmento, descreve o que será  a realidade estética e formal da literatura e da filosofia para o século XXI, pois, ao traçar a especificidade destes géneros literários, projecta a necessidade textual que é própria da sua natureza. O romance, tal como o conhecemos no século XIX ou em meados do século XX, bem como o tratado filosófico, expresso, em síntese, pelo idealismo alemão, já não podem ser a forma ideal de expressão. As Grandes Guerras e as consecutivas crises financeiras e económicas, a par da degradação das condições sociais e do desprezo instalado face à cultura, anularam a possibilidade de ver o todo. A vida, tal como a conhecemos, é um mar de estilhaços dispersos, um espelho partido que impede o olhar. Logo, nesta realidade despedaçada, o que o resta é a sugestão e a projecção de um sentido. Este resto que permanece humano pode ser expresso, traduzido em texto, pelo ensaio e pelo fragmento, géneros que não se fecham em si mesmos, mas que produzem uma teia de afinidades que revela uma imagem do todo.

Segundo João Barrento, "o ensaio faz-se a bordo dos dias. E a bordo dos livros, na leitura acidental, mais do que a dirigida" (17). O ensaio não suspende a vida, alimenta-se dela e transforma-a em texto. "A vida do ensaio nasce de um névoa que se aclara" (21). Essa neblina que é a génese do ensaio tem a sua origem na própria vida, nas leituras que esboçam e delineiam novas leituras. O ensaio manifesta o fio de vida que une todas as coisas e sugere uma visão holística, na qual o limite da palavra, do texto ofertado, conduz-nos, inevitavelmente, para uma imagem de totalidade. O silêncio, o enigma que encerra o mistério, e a revelação que não se limita ao se que lê, mas que se eleva na sugestão de uma nova viagem, são a natureza essencial do ensaio e do fragmento. 

O autor diz que "no fragmento, a linguagem não fala, mas nomeia" (70) e é essa invocação do nome, enquanto síntese daquilo a que se refere, que nos transporta para além do texto, da palavra cantada. O fragmento não gera concórdia, nem promove uma unidade harmoniosa, a sua natureza confessa a discórdia, a tensão entre os opostos, a permanência de tudo o que existe nesse conflito de contrários. A unidade, o todo, esconde-se, vela-se nessa razão divina, nesse Logos que oculta, numa tecedura, a guerra que liga os opostos. 

O que encontramos na leitura de Heraclito, de Montaigne, de Schlegel, de Novalis, de Benjamin, de Llansol  e de tantos outros é essa plena expressão do fragmento e do ensaio. Neles, o texto é uma imagem de um livro total, único, o qual se estende, de página em página, de ensaio em ensaio, de fragmento em fragmento, num livro do mundo. A totalidade é alcançada pelo aceno, pelo vislumbre, pela semente que se reproduz.

A leitura de O Género Intraquilo não se esgota, pois existe uma necessidade constante de reler, de voltar atrás, de deter uma frase ou uma citação, de pensar o que foi dito, ou, melhor dizendo, nomeado. Leia-se.  

  

João Barrento 

O Género Intranquilo - Anatomia do Ensaio e do Fragmento

Assírio & Alvim

2010