Melville, em Bartleby, o Escrivão, expressou uma categoria filosófica que pode também ser entendida como um modo último de vida. A impotência, a não-potência, o acto de contrariar a acção impõe-se como possibilidade, como uma permanência na possibilidade. O dizer "Prefiro não o fazer" é o baluarte supremo da resistência, revela que pode, mas prefere não o fazer. Existe aqui uma deliberação, uma escolha que, embora impeça o acto, a realização, não deixa de ser activa.
Agamben, no ensaio "Sobre o Que Podemos Não Fazer" (57-9), diz que "o homem é, por conseguinte, o ser vivo que, existindo sob o modo da potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, trate-se de fazer ou de não fazer" (58). A potência, a dinâmica que exige o acto, que força a realização vê na impotência uma forma de resistência, de contrário. Melville escreve: "de início, Bartleby produziu uma enorme quantidade de escrita. Como se estivesse faminto de copiar, parecia empanturrar-se com os meus documentos. Não havia pausas para a digestão. Trabalhava dia e noite, sem parar, copiando à luz do Sol ou de uma vela. Eu ter-me-ia deliciado com a sua aplicação caso a sua diligência fosse animada. Mas ele escrevia em silêncio, sem brilho, mecanicamente" (31). Nesta passagem, podemos destacar alguns aspectos: em primeiro lugar, o verbo copiar, Bartleby não cria, não gera, copia, transporta, de um lado para o outro, o texto já existente; em segundo lugar, o trabalho contínuo, a acção sem suspensão, sem alternância; e, em terceiro lugar, a mecanicidade do acto de copiar, o silêncio que é a repetição do mesmo, o brilho que falta, a alegria que está ao ausente. É face a este trabalho que Bartleby opta por não o fazer, por se recusar, constantemente, a desempenhar as acções solicitadas pelo patrão, que diz "tivesse eu notado o mais pequeno desassossego, zanga, enfado ou impertinência na sua atitude, por outras palavras, tivesse existido o mínimo vestígio de humanidade nele, sem dúvida que o teria expulsado com violência das minhas instalações" (33). Bartleby, no seu acto de não fazer, anula-se como humano, priva-se de sentir. O escrivão repete a não-dinâmica, a impossibilidade que a sua escolha gerou. Em última análise, Bartleby cria pela primeira vez, do seu acto criativo produz a não-acção.
Esta máxima é extremamente perigosa para a ordem social, pois, por um lado, implica um acto axiológico, uma atribuição de valor, e, por outro, rejeita o valor que confere à realidade, afasta-se dela, distancia-se, escolhe não intervir. Esta impotência é o estágio último de uma greve de zelo. O trabalhador cumpre o dever de estar no local de trabalho, mas não executa os procedimentos solicitados. No entanto, a sua postura não é de provocação, é sim de negação. Pensamos, com frequência, que a resistência está na acção, no movimento, todavia, esta forma de resistência é desconcertante, priva a realidade do seu sentido, pois não é reacção, luta de contrários, é um revogar deliberado da possibilidade de fazer, o que põe em causa a interacção social.
Bartleby, o Escrivão de Melville e "Sobre o que Podemos Não Fazer" de Agamben são duas leituras interessantes que nos abrem a mente para um outra possibilidade. Leia-se.
Herman Melville
Bartleby, o Escrivão
Tradução Maria João da Rocha Afonso
Editorial Presença
2009
Giorgio Agamben
"Sobre o Podemos Não Fazer", pp. 57-59
Nudez
Tradução Miguel Serras Pereira
Relógio D'Água
2010