sexta-feira, 6 de maio de 2016

Não queiras ser um Deus, sê antes Humano

Baburen, Dirck van, Prometeu a ser Agrilhoado por Vulcano, 1623. 
Amesterdão: Rijksmuseum.

  Num mundo sem Deus, é mais fácil construir um deus do que um ser humano. A sociedade avançou - ou regrediu - num processo de individualização extrema que egotiza a realidade e desumaniza a consciência que temos de nós próprios, dos outros e do mundo. Perdemos o humano, porque nos engrandecemos como deuses.

  Abastecemos com egocentrismo a nossa imagem e consideramos a aparência a nossa verdadeira essência. A obsessão pelo corpo e a necessidade de anular o envelhecimento são prova da incapacidade de nos aceitarmos como humanos. O gregos tinha o conceito de kalokagathía que significava a união do belo, kalós, com o bom, agathós. Esta noção daria, mais tarde, a máxima mens sana in corpore sano que, curiosamente, deriva de um verso, usado com ironia, na Sátiras (X, 356) de Juvenal. Orientamos a nossa atenção para o corpo e para o belo e deixamos a mente e o bom tolhidos de cuidado. Basta vermos o número de pessoas que recorre a qualquer forma de terapia ou aconselhamento para a mente. A alma humana está profundamente doente, pois consolidou a sua existência, mais do que nunca, na aparência que é, por natureza, efémera.

  A condição humana é absurdamente frágil. A doença, o envelhecimento e a morte não são possibilidades, são categorias que nos definem como humanos. Lá por comermos muita quinoa, bulgur, seitan ou bagas goji não anulamos a possibilidade de virmos a ter cancro, caso exista uma predisposição genética. Podemos, de facto, com uma alimentação saudável prevenir muitas doenças, mas não destruímos, por completo, a possibilidade de termos uma doença grave ou terminal. O exercício, bem como a alimentação, também não afasta da nossa existência o natural envelhecimento do corpo. Pode melhorar a nossa condição física, mas não deixámos de envelhecer.

  A escolha radical pelo culto da aparência revela-se até na linguagem. Para preservar um enorme espectro de ilusões, desenvolvemos eufemismos para dar um outro sentido à realidade. Já não dizemos que é mentira ou falsidade, dizemos que falta à verdade ou que é uma inverdade. Como temos um medo atroz de envelhecer, porque, no fundo, tememos a decadência e a morte, deixámos de ser velhos para sermos idosos, seniores ou anciãos. Ora idoso é quem tem idade e é um mero elemento quantitativo, mais ou menos anos, mais ou menos idoso; sénior vem do latim senior que indica quem tem mais anos, é um denominador superlativo, oposto a minor, que indica quem tem menos de trinta anos, o jovem e a criança; e, por fim, ancião indica alguém que pela experiência ou conhecimento tornou-se um exemplo, logo é um elemento qualitativo que não é comum a todos. No fundo, quer queiramos ou quer não, quando envelhecemos somos velhos, mas podemos ser orgulhosamente velhos.

  A ambição de ser um deus exige palavras e ruído. Perdemos o dom maravilhoso do silêncio e do seu potencial criador. Zenão de Cítio diz que "a natureza deu-nos somente um boca, mas duas orelhas, de modo que devemos falar menos e escutar mais" (Diógenes Laércio, VII, 23). Falamos por falar, falamos sem sentido, mas sobretudo falamos de nós. Eu sou, eu faço, eu fiz, eu penso, eu sinto enchem os discursos, tudo porque temos a necessidade de divinizar a nossa existência. Temos de ser os melhores, os mais esbeltos, os mais assertivos e com opinião formada sobre tudo. Face a nossa magnitude, os outros só podem ser alvos de crítica. Tudo porque não sabemos ser humanos, porque se soubéssemos, compreenderíamos a nossa condição imperfeita e efémera.

  Os dois textos homéricos, a Iliada e a Odisseia, apontam, logos nos primeiros versos, para a diferença radical entre homem-deus e o homem-humano (perdoe-se o pleonasmo). A Ilíada (I, 1-7) começa da seguinte forma:

Canto, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles. 

O verso sétimo indica a dicotomia que anteriormente se descrevia. De um lado está o Atrida, Agamémnon, soberano dos homens, e do outro o divino Aquiles. O filho da deusa Tétis e de Peleu, o rei dos mirmidões, têm o seu olhar no céu, na glória da eternidade. É um meio-humano que, no fundo, deseja ser apenas deus, imortalizado no tempo e na história. Contrariamente, a Odisseia (I, 1-10) começa assim:

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion,
o Sol - e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.

Odisseu, ou Ulisses, é humano, sofre, enfrenta a possibilidade da loucura, teme pela sua vida e tenta salvar-se. É um homem que recorre à  inteligência e à astúcia para sobreviver. Os dois heróis são, por isso, exemplo dos dois vectores apresentados: o querer ser deus e gozar da imortalidade e o ser humano e aceitar essa condição. Aquiles deve o direito de escolha porque era um semideus. Preferiu a glória imortal e a vida breve, em vez de uma vida longa com mulher, filhos e netos, mas foi o sangue divino de Tétis que lhe deu essa hipótese. Ora Ulisses, à semelhança de todos os humanos, não pode escolher. Teve sempre a vida presa por um fio, como todos nós, com a ameaça constante da tesoura de Átropos.

  O egocentrismo da sociedade contemporânea deixou-nos num estado de desumanização sem par. As pessoas sensibilizam-se mais com um cão maltratado do que com os bombardeamentos a um hospital, cheio de crianças e mulheres grávidas, em Aleppo. Movem-se por causas idealizadas, mas têm pouca compaixão pelo próximo. Estamos tão focados em nós, nos deuses que queremos ser, que nos esquecemos do outro e da nossa humanidade. 



BIBLIOGRAFIA:
  • Diógenes Laércio, Lives of the Eminent Philosophers, 2 Volumes. Tradução Robert Drew Hicks. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 1925.
  • Juvenal, Juvenal and Persius. Tradução Susanna Morton Braund. Cambridge (MA) e Londres: Loeb Classical Library, 2004.
  • Homero, Ilíada. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
  • Homero, Odisseia. Tradução Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

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