terça-feira, 12 de março de 2013

Kierkegaard: Do Dinamarquês para o Português

O Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, em parceria com editora Relógio D'Água, tem desenvolvido um projecto de tradução e de edição da obra de Kierkegaard. Até Novembro de 2009, este projecto ficou restrito ao Centro de Filosofia, porém, a partir dessa data, o público em geral pode acender, com relativa facilidade, a obra deste filósofo. A Relógio D'Água deu à estampa, no final do mesmo ano, duas obras: Temor e Tremor (Tradução de Elisabete M. de Sousa) e A Repetição (Tradução de José Miranda Justo).

Neste projecto, é de destacar a importância da tradução. Os textos de Kierkegaard foram traduzidos do original, em dinamarquês. Esta tarefa árdua, que implicou a aprendizagem da língua, possibilitou ao leitor português ler uma tradução que não passa por uma língua intermédia, habitualmente o inglês. No entanto, este esforço de tradução já tinha sido iniciado com duas outras obras: In Vino Veritas (Tradução de José Miranda Justo, Antígona, 2005) e Adquirir a sua Alma na Paciência (Tradução de Nuno Ferro e de Mário Jorge de Carvalho, Assírio & Alvim, 2007). 

Este tipo de tradução é fundamental para a cultura portuguesa, pois se queremos entrar numa realidade editorial e académica, que noutros países tem décadas de avanço, temos de superar os esforços que até aqui têm sido desenvolvidos. É preciso fazer mais. Não se justifica que só no início do século XXI possamos ler estas obras a partir do original. Kierkegaard é uma presença incontestável na história da filosofia contemporânea e, a par de Nietzsche, os seus textos revelam, para além do pensamento filosófico, uma beleza literária digna de uma leitura dedicada, atenta e surpreendente. 

Em Temor e Tremor, Kierkegaard parte do desmame da criança e da Aquedah, do sacrifício de Isaac, para uma teoria do amor, em todas as suas variantes. Johannes de silentio (pseudónimo do autor) expressa, enquanto poeta, um elogia de Abraão, diz que "aquele que se amou a si próprio tornou-se grande pelos seus próprios meios, e aquele que amou outros homens tornou-se grande pela sua dedicação, mas aquele que amou a Deus tornou-se maior que todos" (113, 66) e sintetiza que "o que se retira da história de Abraão é a angústia" (124, 81). De seguida, Kierkegaard, depois da "Expectoração preliminar", desenvolve a análise deste episódio bíblico, recorrendo a uma erudição, fértil em referências, que provoca no leitor um mistura de entusiasmo e assombro. Os três problemas (Haverá uma suspensão teleológica do ético?, Haverá um dever absoluto para com Deus? e Terá sido eticamente defensável da parte de Abraão ter mantido silêncio sobre o seu propósito perante Sara, Eliesar e Isaac?) terminam com um epílogo que fecha com uma referência a Heraclito, a mesma que nos conduz, inevitavelmente, para outro texto de Kierkegaard, A Repetição.

Em A Repetição, Constantin Constantius (pseudónimo do autor) desenvolve essa máxima, atribuída a Heraclito, que defende o movimento perpétuo, ou, em última análise, a anulação do próprio movimento. O conceito de repetição é a chave dessa análise de Kierkegaard que diz que "a vida é toda ela uma repetição" (9, 32), mostrando que a repetição e a recordação indicam o mesmo movimento, embora em direcções opostas. Segundo o autor, "aquele que apenas quer ter esperança é cobarde; aquele que apenas quer recordar é voluptuoso; mas aquele que quer a repetição é um homem, e quanto mais energicamente for capaz de a tornar clara para si próprio, tanto maior será a sua profundidade como criatura humana" (10, 32), daí que diga que "a repetição é e permanecerá transcendência" (57, 91). A análise que Kierkegaard faz deste conceito merece ser lida e relida e não apenas pelo leitor familiarizado com os temas filosóficos, visto que é uma realidade que se aplica a própria vida, independentemente da teorização que sobre ela se faça. 

A edição da obra de Kierkegaard não ficou por estas duas obras. Em 2012, saiu as Migalhas Filosóficas (Tradução de José Miranda Justo) e, em 2013, saiu a primeira parte de Ou-Ou - Um Fragmento de Vida (Tradução de Elisabete M. de Sousa). No primeiro texto, Climacus (pseudónimo do autor) começa com uma análise do modelo socrático de maiêutica, com relação entre mestre e discípulo, para, na segunda parte, desenvolver a sua teoria de amor de Deus pelo ser humano, a qual conduz, na terceira parte, para o conceito de paradoxo e para impossibilidade da ideia de verdade socrática e para anulação da sua metodologia. Em última análise, conclui que a verdade não reside no interior de cada um, mas sim num Outro que totaliza a verdade e a eternidade. 

 No entanto, é na obra Ou-Ou que devemos focar a nossa atenção, visto que a mesma não conhecia uma edição integral na nossa língua, apenas o capítulo "Diapsalmata" tem uma edição portuguesa, também ela do dinamarquês, traduzida por Nuno Ferro e por Mário Jorge de Carvalho, pela Assírio & Alvim, em 2011. É uma obra heterogénea, atribuída ao autor A, e com uma enorme riqueza literária. Neste texto, encontramos reunidas a maioria das categorias desenvolvidas pelo filósofo. Seria impossível sintetizar aqui toda a abrangência desta obra, daí que o melhor que o leitor pode fazer é lê-la, surpreender-se-á. Leia-se.




Kierkegaard

Temor e Tremor

Tradução Elisabete M. de Sousa

Relógio D'Água

2009


     

  

Kierkegaard

A Repetição

Tradução José Miranda Justo

Relógio D'Água

2009






Kierkegaard

Migalhas Filosóficas

Tradução José Miranda Justo

Relógio D'Água

2012






Kierkegaard

Ou-Ou - Um Fragmento de Vida (Primeira Parte)

Tradução Elisabete M. de Sousa

Relógio D'Água

2013

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