quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Da Revolta

Aristóteles, na Política, diz que "democracia teve origem devido àqueles que sentiam iguais num determinado aspecto, se convencerem que eram absolutamente iguais em qualquer circunstância; deste modo, todos os que são livres de um modo semelhante, pretendem que todos sejam, pura e simplesmente, iguais" (1301 a 24-27). Não temos qualquer dúvida que essa inspiração de liberdade, que une as pessoas na procura da igualdade plena, é o espírito de uma democracia. Desta forma, se este espírito livre de demanda da igualdade for posto em causa, ameaçado, então cresce nos indivíduos prejudicados por uma injustiça social, a qual não respeita essa proposta democrática de igualdade, um sentimento de revolta. O Estagirita sintetiza essa justificação da seguinte forma: "as revoltas ocorrem sempre devido à desigualdade" (1301 b 26-7).

 Uma outra causa, apontada por Aristóteles, para um estado de espírito propenso à revolta consiste em: "as causas das origens das sublevações são o lucro e a honra, mas também os seus opostos, dado que as lutas surgem nas cidades, para escapar às desonras e aos prejuízos materiais, quer dos próprios quer dos amigos" (1302 a 31-4). Refere também que "a partir do momento em que alguém privado de honras nota que os outros as possuem em excesso, segue o caminho da revolta" ( 1302 b 11-2). A questão que se coloca, neste momento, é inquirir se não será este o espírito que move os cidadãos portugueses para uma manifestação, pois, por um lado, vêem os seus rendimentos diminuídos, a sua condição humana ameaçada, e, por outro, observam, com um certo critério de verdade, que existem outros que não são prejudicados da mesma forma. As palavras do filósofo apontam para um fiel constatação dos sentimentos que, em Portugal, existem. Estará o nosso país à beira de uma revolta? Esta probabilidade deve ser avaliada por todos, mas, em especial, por todos aqueles que tem responsabilidade política.

De seguida, Aristóteles expõe mais duas causas para a revolta: "a prepotência também é causa de sedição sempre que alguém (um ou vários) se dispõe a exercer um poder que exorbita das competências que lhe foram atribuídas pela cidade ou pela autoridade governamental" (1302 b 15-7) e "o medo também está na base dos distúrbios. Manisfesta-se não só nos que incorrem em delito (e que por isso temem castigo), como também nos que, na iminência de serem vítimas de uma injustiça, preferem tomar precauções" (1302 b 21-3). A primeira causa pode também ser evidenciada na actual situação portuguesa. Não poderão os cidadãos sentirem uma certa prepotência governamental, sobretudo quando a prática contraria algumas das propostas eleitorais. A questão que, neste ponto, se coloca é a da legitimidade. Não será a quebra de promessas uma forma de perda de legitimidade? A própria questão eleitoral também pode fazer com que questionemos a legitimidade do Governo, pois o total de inscritos como eleitores foi, nas legislativas de 2011, de 9.624.133 e o número de votantes foi de 5.558.594. Ora o Governo foi constituído pela soma dos seguintes votos: 2.159.742 (PSD) e 653.987 (CDS-PP). Ler aqui. Como pode ser facilmente observado, o Governo, em funções, foi eleito com os votos de menos de um terço dos eleitores. Não deve este facto fazer-nos pensar sobre a questão legitimidade? O medo, a reacção ao medo, gera também uma ameaça à legitimidade de Governo, ou melhor dizendo à sua autoridade, visto que a imposição de um injustiça quebra eticamente o vínculo entre os cidadãos e os seus representantes.

Os governantes deviam equilibrar o agir com o pensar e a leitura da Política de Aristóteles seria um bom complemento para a necessidade um espírito democrático. Pensar as causas da revolta é pensar também na sobrevivência da Democracia.



Aristóteles

Política

Edição Bilingue

Tradução António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes

Vega

1998

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Páginas Perdidas

A História Universal da Destruição dos Livros de Fernando Báez sintetiza essa realidade devastadora que é a destruição de livros. A investigação começa na antiguidade e continua, nesse rasto de páginas perdidas, até à actualidade. 

Pensar nos livros que foram destruídos, devido a causas naturais ou humanas, cria um luto da alma, uma quebra na possibilidade de ler. Se nos focarmos na antiguidade e imaginarmos que não possuímos certos livros, simplesmente porque nos foi furtado o objecto da leitura, então sentimo-nos frustrados, impotentes, incapazes de satisfazer uma curiosidade que não pode ser realizada. Não gostaríamos de poder ler todas as tragédias gregas? Como seria a totalidade da obra de Ésquilo dedicada a Prometeu? Como seriam as obras cujo conhecimento se limita ao título? Ou as obras das quais só nos restam fragmentos? Como seria a totalidade do livro de Heraclito? Ou que nos falta de Platão e de Aristóteles? Não sabemos, só podemos visualizar uma imagem de conhecimento, uma visão universal.

Como seria, para estudioso contemporâneo, poder abraçar todas as obras albergadas na Biblioteca de Alexandria? Todas os comentários das obras clássicas seriam rescritos, rasgados, esquecidos, pois estavam incompletos, errados, baseados num falácia que a destruição fomentou. Encontramos, no livro de Báez, uma panóplia de factos, desde a catástrofe natural à mão intolerante e cega de certos homens. A tentativa de compreender o biblioclasta é sempre vã. É o abismo da ignorância, o olhar que não quer ver que promove este acto ignóbil. O biblioclasta padece de uma bibliofobia, teme o livro, o seu conteúdo, rejeita-o, quer devorá-lo, mas sem o assimilar. O acto de destruir um livro é uma mistura de medo e de ódio. Ao longo da história, os relatos da destruição de livros figuram sempre como uma tentativa de afirmar uma outra verdade, que se quer única, exclusiva, caso contrário como poderíamos olhar para a morte Hipátia e para a contínua eliminação das suas palavras, dos seus escritos. A destruição de livros, quando é promovida pelo gesto humano, serve sempre uma agenda, uma vontade deliberada que diz que é preciso anular aquele texto, apagá-lo da memória.

Nos dias de hoje, é mais difícil a destruição total de um livro, a menos que se trate de um texto antigo, de uma edição limitada ou de um exemplar único. A Internet também veio dificultar este processo, o livro globaliza-se, no entanto, o que actualmente destrói um livro é o esquecimento. Quando um livro sai da estampa, o seu tempo de vida numa livraria é muito curto, pois se não for vendido, a devolução é certa, e, depois de devolvido, o seu destino é um lugar esquecido no armazém do editor, o qual, por necessidade financeira ou dedicação profissional, ainda o vai tentar vender. Primeiro, inclui-o em consignações e espera que a sua lombada, fechada entre livros e pouco visível numa estante perdida, lhe traga uma venda, para que, de seguida, o reponha e espere por outra venda. Depois, tenta outros meios comerciais, espera pelas feiras do livro ou por uma venda no seu sítio na Internet. Por fim, já com o problema de falta de espaço no seu armazém, pois, nos meses ou anos que se seguiram, editou mais algumas dezenas ou centenas de títulos, começa a desejar ver-se livre dele e então vende-o em saldos, a preços tão baixos que espera reduzir a quase nada o stock existente. Se isso não resultar, resta-lhe duas opções: ou o vende a peso para uma empresa que o compre nesse modalidade, ou o destrói, ganhando espaço e vantagens fiscais. É claro que ainda existem editores dedicados que os conservam nos seus armazéns, porém, o fim é o mesmo a destruição pelo esquecimento. Este é talvez o único facto que falta incluir no livro de Báez, porque de resto os melhores exemplos estão lá.

A leitura do livro História Universal da Destruição dos Livros pode aumentar a nossa consciência sobre aquilo que perdemos, sobre as páginas que não lemos. Leia-se.




Fernando Báez

História Universal da Destruição dos Livros

Tradução Maria da Luz Veloso

Texto Editora

2009


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A Experiência da Viagem

A experiência da viagem conduz sempre a um processo de transformação. O eu torna-se num outro, renova-se na novidade que é apreendida. No entanto, a viagem necessita de uma disponibilidade, de uma abertura ao novo, ao estranho, ao desconhecido. Em certa medida, a viagem é uma experiência iniciática. O indivíduo ao viajar entra num outro mundo, numa realidade que não é a sua.

Michel Onfray, na Teoria da Viagem, reflecte sobre o desejo de viajar, sobre o impulso nómada que pode habitar em nós. O filósofo francês diz que "viajar exige uma abertura passiva e generosa às emoções despertadas por um lugar que deve ser capturado em toda a sua brutalidade primitiva, como uma oferenda mística" (62).  É essa disponibilidade para sentir um lugar estrangeiro que nos transforma. 

Onfray refere também que "a viagem deriva mais do convite socrático a conhecer-se a si próprio do que da escalada do Gólgota" (83). O conhecimento de si próprio é adquirido pela apreensão de uma realidade espacial inaugural, em bruto, desconhecida. É uma experiência mística que exige a contemplação, porque, depois de viver essa alteridade de espaço, o sujeito retorna à origem, transfigurado, conhecedor de uma língua estrangeira. A palavra é outra, pois a sua linguagem cresceu, vivificou nesse acto de se abrir ao mundo.

"Viajar conduz inexoravelmente à subjectividade" (88). O sujeito conhece-se naquilo que escolhe para si, na realidade que acolhe como sua e que transforma face ao seu modo de pensar e sentir. Ao longo da história, a viagem foi sempre encarada como um processo de crescimento, veja-se o caso dos filósofos gregos que viajavam e assimilavam nas suas teorias esse conhecimento estrangeiro. Pitágoras e Platão foram disso exemplo. Os egípcios, os persas ou os caldeus enriqueceram a filosofia destes homens. Também na literatura, a viagem implica essa disponibilidade para conhecer-se a si próprio. Gilgamesh, a Comédia de Dante ou a Viagem a Itália de Goethe expressam essa realidade transformadora que é a viagem. Os textos do Graal também indicam essa dinâmica. A Morte de Artur de Thomas Malory, Perceval, o Conto do Graal de Chrétien de Troyes e Parcifal de Wolfram von Eschenbach resumem a viagem que tem como finalidade um destino transformador que é, neste caso específico, uma imagem de redenção. O Graal transforma e liberta aquele que o procura e aquele que o encontra.

A Teoria da Viagem de Michel Onfray é um excelente resumo do conceito de viagem. Leia-se.



Michel Onfray

Teoria da Viagem - Uma Poética da Geografia

Tradução Sandra Silva

Quetzal

2009




segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Como um Corpo Morto assim Caí

Dante, no Canto V do Inferno, desce ao 2º Círculo, o dos Luxuriosos, aquele em que os "pecadores danados sãos carnais" (V, 38). Minos rege este lugar de dor certeira e o temor que provoca é tal que as almas em desventura logo confessam os pecados cometidos. Os amantes de um amor em que amar é culpa são arrastados num turbilhão infernal, juntos, sem se separarem, para toda a eternidade. 


Dante, acompanhado por Virgílio, observa todos aqueles "a quem amor tirou da vida hostil" (V, 69) e escuta, do seu sábio guia, os nomes que, às sombras, o dedo atribui. A primeira de todos aqueles que são volvidos na sua própria ruína é Semirâmis, imperatriz, esposa de Nemrod, construtor da Torre de Babel. Segundo a Comédia, a filha de uma sacerdotisa, abandonada e alimentada por pombas, torna-se numa mulher com o "vício de luxúria tão rompida, / que o líbito fez lícito por lei" (V, 55-6). Esta senhora condenada é, por vezes, comparada com a deusa de Éfeso, mas é a deusa cipriota que vela por ela. 

De seguida, vê Dido, abandonada por Eneias e que ceifou a sua própria morte. Cléopatra, Helena, Aquiles, Páris e Tristão são as sombras amantes que seguem, em tão dolorosa procissão. Porém, é com a história de Francesca da Polenta e de Paolo Malatesta que Dante mais se compadece. Francesca, casada com Gianciotto, irmão de Paolo, é apanhada em acto pleno pelo marido, que mata os amantes sem qualquer hipótese de arrependimento. Dante descreve este amor como um "amor que amado algum amar perdoa" (V, 103). Como pode o amor não amar quem é amado? Essa é a pergunta que começa a quebrar o andar de Dante. A dor de amar tira o passo do caminho. O amor de Francesca e Paolo "conduziu a uma só morte" (V, 106), unidos são arrastados na sua queda. O fratricida, no entanto, recebe, em Caína, as suas recompensas.  

Por fim, Galeotto, no livro, é timoneiro da palavra, do texto que introduz o amor de Guinevere e de Lancelot. "Éramos sós e nada a nós suspeito" (V, 129), diz o verso que ao texto reporta, e foi no beijo solicitado que "a boca me beijou todo anelante" (V, 136). Este beijo que o valor proíbe faz com que a leitura pare. 

Francesca e Paolo e Guinevere e Lancelot unem, na palavra que o amor indica, a mesma dor que o choro impele. A morte é sentida neste amor que à queda leva e Dante diz que "como um corpo morto assim caí" (V, 142).

O Canto V do Inferno de Dante é um assombro para quem lê, pois ver aqueles que amaram e amam na sua triste sorte conduz-nos, inevitavelmente, à semelhança e à compaixão. Identificamo-nos com a dor lida e desejamos que a luz do Paraíso receba este amor. 

Ler a Comédia é um desafio e uma bênção, uma descoberta que todos os dias se vivifica.        


Dante Alighieri

A Divina Comédia

Tradução Vasco Graça Moura

Quetzal

2011

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A Arte entre a Vida e a Morte: Para uma Leitura de Broch

A Morte de Virgílio de Hermann Broch é umas das maiores obras da literatura universal. A personagem principal, o poeta latino Virgílio, autor da Eneida, não é apresentado como na Comédia de Dante, um guia, uma mestre, aquele que aponta o caminho, nesta obra, olhamos, pela força lírica das palavras, para um Virgílio moribundo, com a morte invadindo-lhe a carne. O poeta tem o seu coração inquieto, duvida do sentido e do valor da vida, valor este que, no seu caso, foi alcançado pela arte, enquanto expressão da vida. Porém, quando a morte se aproxima, a importância da arte é posta causa, perde, aparentemente, o seu sentido, daí que Virgílio queira destruir a sua grande obra. O texto expressa esse desencanto nas palavras: "para se reconhecer a vida, não é preciso a poesia" (II,101), "o que eu escrevi tem de ser consumido pelo fogo da realidade" (II, 22). O conhecimento da vida depende do conhecimento da morte.

Maria Filomena Molder, em O Absoluto que Pertence à Terra, livro dedicado a Broch, diz que "o conhecimento da morte revela-se na transformação do tempo em espaço" (73). Ora é precisamente nesta transformação do tempo em espaço que podemos encontrar, através do conhecimento da morte, esse absoluto que pertence à terra. A relação de conhecimento - ou de reconhecimento - entre a vida e a morte, alcançada pelo valor da vida, o qual indica também o sentido da arte, permite que alcancemos uma forma de redenção. O Anjo da Terra garante, neste processo de transformação, um gesto de dádiva, um toque que purifica.

A Morte de Virgílio representará sempre uma leitura inacabada, pois em cada página, cada frase, cada palavra podemos encontrar um olhar renovado. As grandes obras concedem-nos as bênçãos da novidade e do espanto.

Hermann Broch

A Morte de Virgílio

1º Volume

Trad. Maria Adélia Silva Melo

Relógio D´Água

S/d




Hermann Broch


A Morte de Virgílio

2º Volume

Trad. Maria Adélia Silva Melo

Relógio D´Água

S/d






Maria Filomena Molder

O Absoluto que Pertence à Terra

Edições Vendaval

2005





sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Lembrar Llansol no Texto Lido

Maria Gabriela Llansol faleceu a 3 de Março de 2008 e desde então foram apenas publicados dois livros: Uma Data em Cada Mão - Livro de Horas I (2009) e Um Arco Singular - Livro de Horas II (2010). Porém, segundo o Espaço Llansol, o seu espólio é constituído por 25.452 páginas digitalizadas: 

Cadernos 1º Núcleo - 17.541 páginas; 
Cadernos 2º Núcleo - 5.347 páginas;
Agendas - 2.280 páginas;
Blocos de Notas: 284 páginas. 

O trabalho dos colaboradores do Espaço Llansol é louvável, com uma determinação legente e uma amizade altruísta. No entanto, a edição não corresponde à dedicação que estas pessoas tem oferecido ao texto llansoliano. 

Em Portugal, os espólios demoram demasiado tempo a passar a texto publicado. Por exemplo, Jerónimo Pizarro, na Revista Ler de Setembro de 2012, diz que cerca de 30.000 páginas do espólio de Fernando Pessoa continua por editar. De facto, parece peculiar que um escritor como Pessoa, que faleceu a 30 de Novembro de 1935, continue a ter textos por editar.   

O texto precisa do leitor e o leitor do texto. É essa misteriosa afinidade que preserva uma teia de vida entre um e outro, daí a importância de publicar o espólio, pois o leitor deve ter um acesso completo a obra de um autor, só assim poderá compreender e amar aquelas palavras que libertam, que iniciam um caminho de descoberta, de novidade e de espanto. É essa repetição do entusiasmo da primeira leitura, sempre renovada no texto lido, que confere ao leitor/legente esse assombro inaugural. Logo, o texto por editar e o livro esgotado assumem uma marca de impossibilidade, negando ao cantor de leitura a palavra que pede o seu olhar. 

Repensar a publicação dos espólios é uma necessidade cultural e humana e o texto de Llansol - e de Pessoa - precisa de ser lido para ser lembrado. 

  

Maria Gabriela Llansol

Uma Data em Cada Mão
Livros de Horas I

Assírio & Alvim

2009






Maria Gabriela Llansol

Um Arco Singular
Livro de Horas II

Assírio & Alvim

2010





quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Ler Hélia Correia

Hélia Correia recebeu, nos últimos dias, dois prémios literários: o Prémio Casino da Póvoa/Correntes d'Escritas, com o livro A Terceira Miséria, e o Prémio Vergílio Ferreira, com o romance Adoecer (este texto recebeu também o Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2011).

Há uns anos atrás, numa sala da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, ouvi Hélia Correia a falar sobre a tragédia grega. A autora fora convidada por Almeida Faria, docente da disciplina Estética - Estudos Aprofundados. A empatia tem de ser imediata para quem quer que oiça - ou leia - esta escritora. A poesia enche cada palavra, vela o texto falado ou escrito, conferindo-lhe uma aura de mistério, na qual a poesia e a vida se fundem numa sizígia estelar.

Penso que Hélia Correia, bem como Maria Gabriela Llansol, merecem mais reconhecimento do que aquele que lhes tem sido dado. As suas obras são únicas e é esta unicidade que atribui, ao texto, uma vida que pulsa nas palavras e deslumbra em cada frase ou verso. Esta característica, bem como tantas outras, fazem com que estes textos não se extingam num instante, num momento comercialmente efémero. Melhor do que os prémios é a leitura.

A sugestão que fica é que se leia estes dois livros. 



Hélia Correia

A Terceira Miséria

Relógio D'Água

2012









Hélia Correia                              
                                             
Adoecer

Relógio D'Água

2010

Traduzir os Clássicos: Um Caso de Esperança

Em Portugal, as traduções dos clássicos gregos e latinos são lentas e tardam em sair do prelo. Este país, apesar de estar na ponta da Europa, não deixa de partilhar a herança europeia, fortemente enraizada na cultura clássica. 

No que diz respeito à tradição filosófica, o pensamento europeu é dominado pela influência de Platão e de Aristóteles, contudo, em Portugal, não existe, ainda, uma edição completa, bilíngue, semelhante à de outros países, destes dois autores. Em Espanha, temos a da Editorial Gredos, em França, a da Les Belles Lettres e,  no Reino Unido, a da Loeb, só para dar alguns exemplos. Se tivermos em consideração estas edições, vemos que não possuímos, em Portugal, nenhuma publicação equivalente. 

Durante décadas, criamos um modelo redutor de editar "versões", baseadas em segundas traduções, ou seja, traduzíamos do francês e do inglês, ignorando o texto original, o que frequentemente dava à estampa textos cheios de erros linguísticos e filosóficos. Esta realidade fundamentava-se em dois factores: por um lado, vivemos muito tempo em ditadura, na qual a cultura aproximava-se mais de um gueto do que de uma esperança de universalidade, logo, a exigência era colocada em níveis muito baixos, o simples facto de existir uma edição já saciava a fome de conhecimento que não se revia no regime político; por outro lado, em termos académicos, o ensino da língua grega e da língua latina tem revelado uma expressão muito tímida e se as universidades e, sobretudo, a política educativa negligenciarem a anterior Filologia Clássica e a actual Línguas e Literaturas Clássicas, então o número de tradutores profissionais torna-se inferior às necessidades, o que naturalmente faz com que os leitores fiquem privados dos textos que deveriam ler.

O caso de Platão, apesar de tudo, é melhor do que o de Aristóteles. Do fundador da Academia, temos traduzidos a maior dos diálogos, não numa edição bilingue, mas com traduções de grande qualidade. A única grande lacuna é as Leis. Só saiu o primeiro de três volumes, em Novembro de 2004, pelas Edições 70. Continuamos à espera! Já a edição de Aristóteles não goza da mesma sorte. A Imprensa Nacional iniciou um projecto louvável de publicar as suas obras completas, no entanto, as edições tardam em aparecer e tem um preço de venda ao público que não é sustentável face ao poder de compra dos seus leitores. Por exemplo, um volume da edição da Loeb custa cerca de metade do preço de um da Imprensa Nacional. Porém, o caso mais flagrante da tradução das obras de Aristóteles é o da Metafísica. Os portugueses ainda não podem ler esta obra na sua língua. Tiveram, em tempo, a hipótese sentir o aroma dos primeiros livros numa edição da extinta Atlântida, numa colecção dirigida por Joaquim de Carvalho. No Brasil, as Edições Loyola pegaram na excelente edição italiana de Giovanni Reale e deram aos seus leitores a Metafísica em três volumes: introdução geral; texto original e tradução; e comentários. 

Deixo aqui mais dois exemplos que também tardam em aparecer: o De Rerum Natura de Lucrécio e as Enéadas de Plotino. Continuamos à espera destas edições! Estes exemplos, como tantos outros, servem para ilustrar o nosso atraso cultural. O que pode esperar um país sem referências?  

É, de facto, peculiar que um país que luta pela inclusão no espaço europeu - leia-se União Europeia -, tenha uma relação de desleixo com a sua herança. Quando é que os leitores portugueses poderão ler, na sua língua, estes textos fundamentais? Esta a pergunta que fica.      

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A Cultura também se Atrasa

O Expresso noticiou que a Sociedade de Língua Portuguesa vendeu o seu acervo bibliográfico, cerca de trinta mil títulos, a um livreiro de Lisboa, a justificação, segundo o seu vice-presidente, prende-se com a situação financeira da instituição, com dívidas à Segurança Social e com vencimentos em atraso. Ler aqui.

A cultura está a pagar uma factura muito alta pela actual situação do país. Fala-se, com frequência e com razão, no cinema, no teatro, nas artes plásticas, mas, por vezes, esquece-se a situação do livro em Portugal. As editoras, umas fecham, outras reabrem, umas prosperam sem que se saiba, pois não é conveniente que se saiba, e outras decaem, lançam-se no abismo da insolvência. No entanto, nesta realidade efémera e esquecida, existem elementos que nunca são lembrados: os livros e os trabalhadores. Quando uma editora ou instituição ligado ao livro se afunda, temos de nos perguntar quem é que sai a perder. A resposta é sempre a mesma: o livros e o seus leitores e os funcionários que nela trabalhavam. 

Os livros, outrora editados, caem no esquecimento, perdem-se num alfarrabista ou na estante de uma biblioteca, longe dos leitores. E os trabalhadores, esses juntam-se ao número daqueles que estão num limbo entre o trabalho e o desemprego. Saem de casa, entram ao serviço, cumprem as horas de serviços, esforçam-se por serem profissionais, mas, no final do mês, não recebem. O incumprimento do dever da retribuição é um flagelo tão grande como o desemprego, visto que a incerteza domina em ambas as realidades. 

A cultura está a ficar atrasada, distante de um mundo que precisa de si e de um tempo exige a sua presença.

O Resto Permanece Humano

No Livro XI das Metamorfoses de Ovídio, o autor latino canta o mito de Midas e a sua posição na querela entre Pã e Apolo. No monte Tmôlos, o deus da montanha sentencia que Apolo era o vencedor desse litígio. Midas, que vagueava pelos bosques, decide intervir e pronuncia-se em favor do deus mais antigo. Ora Apolo, ofendido e encolerizado por essa ofensa, pune Midas, fazendo-lhe crescer umas orelhas de burro. Porém, "o resto permanece humano". É neste aspecto que devemos deter a nossa atenção. Se considerarmos a hegemonia olímpica, então temos de assumir que estamos perante uma afirmação de poder do deus Apolo, à semelhança daquela que ocorreu em Delfos, no entanto, se nos detivermos no valor de Pã, enquanto deus telúrico e primordial, então podemos concluir que acção de Midas foi justificada, pois defendia um paradigma antigo. A questão fundamental é saber se o que domina Midas é a parte animal ou "o resto que permanece humano". A dúvida que impera é saber o que rege o indivíduo. O instinto? As paixões? Ou a razão e a inteligência? Sabemos, aliás com uma enorme frequência, que a parte animal habita em nós e sabemos também que esse impulso radical nos faz agir sem pensar, porém temos a consciência, ou devemos ter, que é o humano que nos dignifica. O dom de criar, de ser, sabendo que se é, promove em nós a dádiva de sentir uma afinidade radical com a sabedoria. É o Amor de Sophia que exige que ultrapassemos as nossas limitações e sonhemos com um horizonte longínquo. O mundo que hoje conhecemos vê aumentada a punição de Apolo. O burro alastra-se no que resta do humano e uma das poucas coisas que nos pode salvar é a leitura, o conhecimento. A leitura de um livro que inspire dá-nos mais humanidade do que uma vida envolta na repetição do quotidiano e na aceitação inconsciente das convenções que nos impõem.

Leia-se é uma sugestão de caminho.


Ovídio

Metamorfoses

Tradução Paulo Farmhouse Alberto

Livros Cotovia

2007